Gosto de Cora Rónai.
Não me peçam explicações: gosto, pronto.
Não é só porque sempre admirei seu pai, Paulo Rónai, respeitadíssimo tradutor e pessoa das mais queridas no meio intelectual de sua geração.
Nem apenas porque Drummond sempre me falava bem dela, "eu vi essa menina crescer, ela é muito inteligente...".
E nem só pelas belezas que escreve.
O meu gostar tem um pouco de tudo isso e também alguns dos ingredientes que deixa escapar pelas vírgulas, reticências, exclamações: temperos simples do coração, receitas de família, guardados de gaveta recendendo a perfume com naftalina, sabores de infância... são muitas coisas. Assim que a encontro sempre com muito prazer na coluna do jornal e no blog também.
Mas essa semana Cora foi demasiado fundo, e com tanta transparência e leveza que quase não percebia chegarem-me as lágrimas com tanta força, ao vê-la contar (sim, vê-la, porque Cora se vê no papel) a história do poema roubado à chácara da sua infância.
Ocorre que Paulo Rónai e sua mulher resolveram decorar jardins, quintais, pomares e tudo que de verde havia com, imaginem, poesia pintada em doces tabuletas! Paulo escolhia, Nora pintava, e as tabuletas-poema proliferavam no caminho do verde, a iluminar o espaço da natureza. Tesouros que, como nos conta Cora, o tempo e os humores da floresta encarregaram-se de dissolver.
Mas um deles voltou, e com as próprias pernas que o levaram, mais de 20 anos atrás.
A deliciosa crônica de Cora Rónai revela os detalhes desse insólito retorno com as melhores tonalidades da alma. A bem do melhor entendimento, peço-lhe vênia para resumir: um menino que por ali andava achou "tão bonita" a tabuleta com um poema de Cecília Meirelles, dedicado aos donos da casa, que a levou consigo... e guardou-a muito bem, creio que com respeito e carinho até, pois permaneceu intacta. Para devolver, envolveu-a num saco de lixo preto e anexou um tímido e maltraçado bilhete, no qual revela que, já homem, converteu-se a Jesus e achou mais certo devolver.
A foto que ilustra a crônica mostra a tabuleta restituída soberbamente à paisagem, decorando uma casinha de pássaros ou pombos, talvez. Veio-me forte a emoção ao percorrer a pintura do poema, feita pela mãe de Cora com a delicadeza própria do amor, com reverência e provavelmente um enorme carinho pelo inestimável presente da comadre Cecília (sim, Cora revela também ser sua afilhada). Delicadas folhas de hera formam uma guirlanda a circundar uma parede imaginária que antecipa os sinais do tempo no reboco descascado, um ar de permanência, perenidade...
Um poema assim só podia mesmo voltar para casa. Cora diz que teve vontade de abraçar o homem que o devolveu, e fala da esperança que há num mundo em que meninos roubam poemas e homens honestos os devolvem.
Penso que tem mais razão do que imagina. A esperança foi plantada quando alguém percebeu que as vozes da natureza recitariam poemas, se estes estivessem bem à mão para serem recebidos na alma. Foi multiplicada entre as crianças que cresceram na convivência natural com aquelas tabuletas sussurrantes. O vento por certo acompanhava, no contrabaixo do seu ir-e-vir, as vozes das dríades que entoavam Bandeira, Cecília, Drummond e quem mais ali estivesse. Se a chuva levou alguns, é porque foram enfeitar outro lugar... como esse da Cecília, que acabou por parar nas mãos ávidas de beleza de um menino que, afinal, deu pra alguma coisa, aprendeu sem saber com as rimas, até entender um dia que não devia ficar com algo que não lhe pertencia. Contudo, se o poema o chamou um dia, é porque talvez, de algum modo, lhe pertencesse sim... é o quinhão de esperança que lhe marcou por dentro, que lhe foi doado por obra e graça do amor que nasceu do que foi ali plantado.
E que bateu em mim. Porque eu senti, Cora, o cheiro do verde das folhas a emoldurar as palavras. Arderam-me os olhos, a alma alvoroçou-se, e eu fiquei feliz por viver num tempo em que tais histórias acontecem aos seres humanos de delicado coração.
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