domingo, agosto 17, 2014

Casa de Cômodos - Carne, osso, sangue nas veias

Foto: Divulgação

Uma costureira, uma família de serviçais negros, um português radicado no Brasil, outro recém-emigrado. Gente comum que divide uma casa de cômodos.
Ambientada com precisão, a casa ocupa a caixa cênica tradicional com despojamento, paleta sóbria e uma iluminação tensa, que filtra com paciência os desabamentos progressivos que estão prestes a ocorrer diante dos nossos olhos.
É assim que começa Casa de Cômodos: dizendo logo a que veio. A beleza visual que envolve cenário, luz, figurino e expressão dos atores é o único respiro a que um público completamente hipnotizado tem direito, antes de testemunhar um engenhoso exercício de monstruosidade humana, finamente articulado por uma direção de mestre e alicerçado num elenco absolutamente consistente. Em Casa de Cômodos, que acaba de encerrar sua contundente temporada no Solar de Botafogo, no Rio, nada é o que se espera. Acima de tudo, é preciso estar atento e forte.
Marcelo Marques nos oferece uma rara oportunidade de assistir a um bom teatrão; trabalha como ninguém as minúcias, refina, refina, refina. Sua bagagem como cenógrafo e figurinista premiado, ator e homem de teatro acima de tudo, é visível a olho e alma nus em cada entrelinha, em cada marcação, em cada movimento da luz no espetáculo.
Casa de Cômodos restaura nossa fé no teatro. Sim, no teatro que aprendemos a amar e respeitar ao longo dos anos, quando encenado como projeto de vida. Teatro amalgamado com paciência e delicadeza nos menores detalhes. Teatro como há muitos, muitos anos, não se vê por aqui.
O texto de Cecília Terrana se insere muito bem no contexto do projeto “Sartre mais uma”; é uma história de pessoas de carne e osso, repletas de nuances, com as máscaras caindo a todo momento. Não há vencedores ou redenção. Mas nem por isso menos beleza. Personagens completos, reais, vividos por seis extraordinários atores, conseguem nos conduzir por suas várias camadas, atravessando virtudes, maldade, preconceitos, arrependimentos, boas e más intenções.
 Nenhum de nós escapa ileso à sucessão de horrores, todos eles tão espantosamente comuns e cotidianos, que os moradores da casa de cômodos desfilam no desenrolar da trama. Quem não viveu uma injustiça, não foi vítima de uma mentira, não conheceu gente capaz de tudo para salvar a própria pele?  Por isso é tão fácil a plateia perder, quase automaticamente, a noção de tempo/espaço e até esquecer que não está dentro da trama, mas é, ela própria, uma testemunha omissa das atrocidades desnudadas em cena. Cada ator... não, acho que neste caso é até perigoso individualizá-los; os atores, envolvidos por uma química rara e intensa, nos confrontam com essa sensação o tempo todo. É um incômodo que beira o irrespirável. Se a máxima sartriana é a progressiva decadência do projeto humano, nós, como plateia, estamos sendo compelidos a participar da decomposição daquelas pessoas e enfrentar nossa própria impotência diante de possíveis situações reais análogas.
E o que nos salva, a nós e aos personagens de Casa de Cômodos? A poética e a magia do teatro. Os risos e as lágrimas. Momentos sublimes, como a partilha de uma refeição pelo casal de serviçais Joaquim e Guiomar, de tal beleza que imediatamente remete à lendária cena de Fernanda Montenegro e Gianfrancesco Guarnieri em “Eles não usam Black-tie”, de Leon Hirszman, catando feijão. Ou a primeira cena do mesmo casal, entoando “Com minha Mãe estarei”, canção tradicional da Igreja e presença constante nas missas da década de 1960. Não há como esquecer a expressão do primo Francisco ao ver pela primeira vez a negra Guiomar, a aflição constante no rosto da costureira Elisa, sempre às voltas com o ofício de sobreviver em um mundo que nega a uma mulher sozinha qualquer direito. Ou o ódio contido do sapateiro Joaquim, incapaz de vencer o medo de se manifestar e perder casa e trabalho. Nem o canto de Oxum de Guiomar, em sua cena final. E muito menos a explosão da personagem Elisa, magistralmente transfigurada pela atriz Adriana Zattar, que nos desfere o golpe fatal, digno de Um bonde chamado desejo.
A beleza plástica de Casa de Cômodos, sempre emoldurada por uma luz que é um verdadeiro subtexto, de tão eloquente, é comparável à da montagem de Ragtime na Broadway, na década de 1990, que tive a sorte de assistir. É o desenho de cores, é a profundidade física das cenas, é a delicadeza de cada detalhe. Não há absolutamente nada fora de contexto em cena. Ninguém desperdiça coisa alguma, não há palavras, emoções ou atmosferas sobrando ou faltando.
Marcelo Marques nos deu o grande presente da temporada: orquestrou uma peça de teatro de verdade, com envergadura, começo, meio e fim. Não poderia sequer dizer que Casa de Cômodos é uma pequena joia; não, de modo nenhum. É o diamante Krupp da cena teatral carioca.


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