segunda-feira, novembro 17, 2014

Um cisne

Vejo neste momento a estrela maior do lendário Ballet do Teatro Mariinsky envergar, em pele e penas, um cisne que morre.
Atravessa-me a melodia de Saint-Säens, tão familiar, e mergulho na agonia que se avizinha, em meio ao mais absoluto e irrespirável silêncio. Quebrado apenas pelo farfalhar dos braços-asas que golpeiam debilmente os intervalos musicais, na esperança de, talvez, reter o último sopro de vida.
Estendo, na alma, este breve e comovente instante de beleza; enveredo por uma dobra no tempo e visito os cisnes que perduram dentro de mim. Mudo eu mesma o cenário, a música, o coreógrafo e, em segundos, estou em pleno Lago dos Cisnes, ao som de Tchaikovsky. Admito que posso estar sugestionada pelo pas-de-deux que virá na sequência, mas não, decerto que não, a cena é outra.
Revejo, entre névoas, um cisne branco que, a despeito da leveza aparente, guarda o mundo dentro de si. No primeiro ato do ballet, debate-se entre o enlevo e a tristeza, preso a um encanto irremediável. No rosto quase juvenil, o sofrimento é cortante e me arrebata. Já não consigo caber em minha cadeira; temo que a tenha feito ranger, gafe imperdoável. A música arremete contra o pobre animal feminino e indefeso, incapaz de vencer sozinho o destino que lhe oferece e, ao mesmo tempo, afasta o amor. Como romper aquele corpo que o encarcera e seguir o coração? A agonia do cisne-mulher é também minha. A eloquência da bailarina em expressar, de corpo inteiro, toda aquela dualidade e impotência, me toma por completo. Perco fácil a noção elementar dos limites entre caixa cênica e plateia. E vou junto, nas mesmas águas revoltas, com o coração na garganta. Em raros momentos de lucidez, percebo-me de novo plateia, de olhos grudados naquele cisne imenso e atormentado, e penso, na mais completa ignorância dos próximos passos do enredo, que a intérprete certamente vai explodir a qualquer momento, tamanha a força das emoções que transmite em intenção e gesto. Tudo aquilo é de uma beleza que me transtorna, e eu não consigo entender direito por que.
De volta ao agora, percebo que o pas-de-deux do cisne branco já começou. Mas não posso ficar aqui, tenho de seguir o "meu" cisne para ver o que vai acontecer.
Dá-se, então, a explosão que eu pressentira. O cisne negro, com o dedo em riste e olhar firme, inunda o palco com todas as emoções antes represadas por seu duplo, o cisne branco. E a mesma bailarina já é outra, altiva, imponente, dominadora. Estranhamente, dentro de mim tudo parece se encaixar. Acompanho a beleza dos seus movimentos, senhora do seu espaço e perfeita no conjunto. Respiro fundo, em estado de graça.
Redesperto no agora, bem a tempo de aplaudir os bailarinos russos, ao final do pas-de-deux do cisne branco. Acho que vir aqui hoje, afinal, não passou de um pretexto para essa inesperada viagem pela memória que me coloca, de novo, diante do cisne que, um dia, conquistou a tabula rasa que eu era, em termos de ballet, e me lançou nos trilhos dessa apaixonante forma de arte.
Hoje, no agora, agradeço a Ulyana Lopatkina pela memorável Morte do Cisne, e a Kristina Shapran e Timur Askerov, pelo perfeito Adagio branco de O Lago dos Cisnes.
E sempre, no coração da memória, agradeço a você, Cristina Martinelli, por ter colocado na minha vida a mais perfeita encarnação dos maiores cisnes da história do ballet.


Cristina Martinelli 
Foto: Richard Sasso
Acervo da artista

segunda-feira, outubro 27, 2014

FIDA 21 - Direto de Portugal, a dança em máximo quilate

Filipa de Castro e Carlos Pinillos
Foto: Divulgação CNB - Portugal

Por Maurette Brandt

Filipa de Castro e Carlos Pinillos são bailarinos principais da Companhia Nacional de Bailados de Lisboa, Portugal. Os dois estiveram em Belém pela primeira vez como atrações internacionais do FIDA 21. Simpáticos, acessíveis e super profissionais, integraram-se logo ao grupo de artistas e convidados. No trabalho, muita disciplina e concentração.
No palco, um choque de felicidade, para dizer o mínimo.
A primeira apresentação da dupla aconteceu na quinta-feira, 23, e tirou o fôlego da plateia logo de cara. Vent, coreografia de Carlos Pinillos para música original de Mário Franco, também artista da CNB, trata das constantes explosões que acontecem na superfície do Sol, em pequenas crateras que os cientistas batizaram com o nome de vent. Bem, isto me explicou Carlos Pinillo após a apresentação, lançando ainda mais luz sobre o primoroso trabalho. A concepção original projeta, no ciclorama, imagens das próprias explosões, amplificando o efeito já eletrizante da coreografia absolutamente precisa, de movimentos habilmente articulados e exaustivamente pesquisados. Infelizmente não foi possível usar a projeção no Theatro da Paz, onde o fundo negro e o ciclorama se alternaram, mas ainda assim o impacto foi muito forte.
Nada é comum em Vent. Cada movimento se acopla à música de maneira quase simbiótica e conduz a uma série de pequenos clímax que vão precipitando o espectador numa jornada quase compulsiva. A gente não sabe direito o que nos move além da própria beleza do traçado coreográfico, mas é impossível nos desgarrarmos dos dois, absolutamente sincrônicos, intérpretes até a medula, perfeitos tecnicamente. E não há qualquer distinção entre Filipa e Carlos: os dois são grandes artistas, carismáticos e de uma limpeza técnica invejável, além da química perfeita em cena. O figurino despojado, em tons escuros e transparência sobre matizes alaranjados, cabe perfeitamente no contexto. 
Vent é um trabalho habilmente lapidado e depurado, que demonstra ser possível produzir-se algo novo, e com muita beleza, na área do movimento. Fiquei completamente sem ar. E tenho certeza de que a plateia do FIDA também se extasiou, pois ninguém queria deixar Filipa e Carlos saírem do palco: os aplausos foram muitos e bem compridos.
Sorte nossa que ainda iríamos vê-los em cena mais duas vezes.

Dom Quixote

Engraçado, depois de ver um trabalho absolutamente especial como Vent, que honestamente não sei enquadrar em um estilo definido, foi surpreendente e renovador assistir ao grand pas-de-deux de Dom Quixote, interpretado por Filipa e Carlos. Com toda sinceridade, foi o mais perfeito que já tive a oportunidade de assistir, em todos esses anos. Mas a perfeição não é o ingrediente principal da interpretação dos artistas: a intensidade, o estilo, a coqueteria e o glamour fizeram toda a diferença. Filipa de Castro é uma Kitry sem afetação, senhora de si, coquete e muito elegante, enquanto Carlos, na pele de Basilio, exibe porte, categoria e uma certa ternura.  Irretocáveis nas variações, os bailarinos nos devolvem a um tempo de verdadeiro glamour no ballet, com movimentos grandes, presença cênica e uma ocupação excepcional do palco. Sem nada de novo, tudo é novo, fresco e nunca visto no Dom Quixote de Filipa de Castro e Carlos Pinillos no palco do magnífico Theatro da Paz. Os aplausos retumbantes do público estão nos meus ouvidos até agora.

FIDA 21: muito para lembrar

Comecei, muito animada, a postar o dia a dia do FIDA 21 neste blog, mas o Festival foi tão absorvente que simplesmente não consegui voltar todos os dias ao computador para registrar as emoções da noite anterior.
De volta à terra aparentemente firme do dia a dia, trago para cá a memória recente, as histórias e os melhores momentos que o FIDA 21 deixou no coração.

Aniela Kalif, entre a dança e a prancheta

Conheci Aniela em 2003. Na época já era bailarina da Cia. de Danças Clara Pinto, ainda do grupo "das novinhas", como era chamado carinhosamente. Disciplinada nos ensaios e nas apresentações, Aniela marcava uma presença forte e promissora que foi se confirmando ano após ano. Mas as demandas dos estudos naturalmente vieram junto e sua vida foi se transformando. - Tem uma hora que a gente tem que escolher - conta. - Infelizmente ainda não dá pra se viver da dança, então fui pra faculdade.
Aniela escolheu a Arquitetura como profissão e foi conciliando como podia os estudos e a carreira de bailarina. - Quando não deu mais resolvi ficar só na escola mesmo - explica Aniela, que acaba de começar um mestrado e tem muitos projetos em andamento. Assinou o projeto da loja Grand Jété, que funciona na Escola de Danças Clara Pinto da Travessa Dr. Moraes, assim como a reforma dos vestiários e, mais recentemente, renovou totalmente a sala de espera da escola.
No FIDA 21, Aniela integrou, como convidada, a Cia. de Danças Clara Pinto e brilhou em coreografias de Marcelo Pereira e Adriana Villela. Em forma, com a paixão e a profissão bem conciliadas, Aniela é só sorrisos e simpatia.  Essa disciplina toda vem de berço: Aniela é uma das "filhinhas de peixe" da Escola Clara Pinto: a mãe, Paula Kalif, é experiente professora e ensaiadora da Escola e já atuou, como bailarina, em vários balés da companhia.

 A BON DANCE, uma surpresa

Uma das boas surpresas do FIDA 21 foi o grupo A BON DANCE, da Guiana Francesa. Com bailarinos experientes e talentosos, coreografias inspiradas e bom gosto, o grupo arrebatou prêmios, aplausos e elogios.Os bailarinos Lory Faubert, Lubna Khodr, Yannick Coco e Christophe Aucourd, coreografados por Priscilla Faubert, trouxeram ao FIDA um trabalho refinado, intenso e elegante. Dentre as obras apresentadas, as coreografias Fléaux, apresentada no dia 23, e Variante, no dia 25, foram destaque pela consistência e força. O público adorou. Os bailarinos participaram das competições de solos e duos com grande sucesso. Bravo!

Cia. Nataraja, como sempre, uma beleza

Nataraja é uma das dimensões do deus indiano Shiva e significa "o senhor da dança", conforme me explicou Marieta Hamsá, líder da Cia. de Dança Nataraja, de Belém. Esse grupo me conquistou desde o meu primeiro FIDA: o trabalho é devocional e muito artístico, repleto de detalhes, com música ao vivo, bailarinos talentosíssimos e uma consistência incrível. No FIDA 21, apresentaram Kryta Yuga - A Era da Luz, coreografia da própria Marieta. Lindos trajes, esmero na maquiagem e nos cabelos, coreografia delicadíssima, acompanhada por um excelente bailarino-músico, na flauta. Ver a Cia. Nataraja em cena é sempre uma alegria e um momento de elevação!

No próximo post falarei mais dos convidados deste ano, que arrebentaram a boca do balão, para dizer o mínimo.


quarta-feira, outubro 22, 2014

FIDA 21: Valores da Terra cada vez melhores

Sou FIDA de carteirinha desde 2003 - e me orgulho disso.
Cheguei a Belém e a esse festival incrível pelas mãos de Fábio de Mello, em seu primeiro ano como diretor artístico do evento. Assim conheci Clara Pinto e sua verdadeira saga para criar um fluxo regular e anual de apresentações de dança para Belém. O FIDA já recebeu alguns dos maiores artistas do Brasil e do mundo, além de professores que trazem na bagagem o que há de mais atual em termos de técnica e interpretação, proporcionando uma troca saudável e positiva, que se traduz em crescimento para os artistas da terra e para os que chegam.
Ontem, na estreia do FIDA 21 - sim, são 21 anos de dança e arte em Belém, sim,senhores - tive o prazer de participar do júri de um prêmio que me é muito querido, o "Valores da Terra", destinado aos grupos do Pará. Nesses vários anos é palpável o crescimento desses artistas, que se atualizaram e vêm construindo um trabalho consistente e rico, sem perder de vista os valores culturais locais, mas agregando a modernidade e a evolução. Neoclássico, gospel, contemporâneo, dança do ventre, rap, dança-teatro, folclore... vários estilos ocuparam o palco com força, talento e vontade. Gente, vontade faz toda a diferença quando se trata de driblar as dificuldades e fazer a dança acontecer.
Ontem, no FIDA, foi uma alegria ver grupos como o Dançart,de Marituba, apresentar criações absolutamente modernas, vivas, com forte conteúdo de pesquisa e uma busca genuína por inovar e expandir o talento de seus componentes. O mesmo vale para o grupo Ribalta, de Ananindeua, com a obra "Confissões": pesquisa, inovação, uso criativo do espaço, dos figurinos e dos próprios corpos dos bailarinos como elementos cênicos. "Windos", do Grupo Dança e Arte, foi uma inovadora surpresa no fértil terreno do rap, hip-hop, passinho... sei lá, de tudo um pouco. Satirizando a tecnologia e ao mesmo tempo reconhecendo seu papel essencial na vida de hoje, a coreografia iluminou com alegria o palco, com bailarinos de excelente técnica e grande vivacidade. Um grande sopro de vento novo. Mas as surpresas não pararam por aí: o grupo Free Dance, de Belém, trouxe ainda mais novidade e alegria para "desconstruir" o espaço do palco com graça e talento, numa grande homenagem à arte da mímica. O figurino recriava com humor e delicadeza o personagem Carlitos, de Charlie Chaplin, mas evocava Marcel Marceaux e outros grandes artistas que transformaram o mundo num lugar melhor com sua reinterpretação do ser humano comum. Em suma, a dança cresce no Pará - e o FIDA é sem dúvida a grande vitrine para se ver isso tudo.
Destaque para a emoção sempre renovada de ver a Cia. Palavras em Movimento, de Soure, para provar que dançar é algo que está no espírito e se transfere para o corpo com alegria e beleza, em qualquer época da vida. Parabéns à turma de Soure, que sempre nos traz o folclore paraense com emoção e beleza! Presença obrigatória e imperdível!

Convidados emocionam

Este ano, Carlinhos de Jesus e Vanessa Nascimento resolveram dançar na plateia. Ninguém esperava, mas todo mundo adorou. Os bailarinos fizeram seus próprios caminhos entre as cadeiras, num verdadeiro baile dedicado a homenagear quem estava sentado. Houve de tudo: beijos, suspiros e até Carlinhos no colo de uma sorridente senhora. Grande carinho dos artistas para com o público de Belém, recebido com alegria e muitos aplausos.

Cícero Gomes e Karen Mesquita, primeiros bailarinos da geração recente do Municipal do Rio, estão entre os artistas mais brilhantes do momento. Técnica, rigor, profissionalismo e a chama viva do talento são marcas dos dois excelentes bailarinos, que fizeram o palco do Theatro da Paz "arder" com o grand pas-de-deux de Chamas de Paris. Cícero, o vigor em pessoa, eletrizou a plateia com seus célebres saltos e uma postura em cena que o coloca em igualdade absoluta de condições com os maiores artistas do ballet em nível mundial. Karen Mesquita, com uma presença cênica arrebatadora e técnica impecável, não fica atrás: a química entre os dois é inegável e contagiante. Essa geração jovem do ballet brasileiro sem dúvida merecia e merece dançar muito, dançar mais, e realizar-se num arte que fazem tão bem, com tanto despojamento e gosto. É a verdade da arte, algo que não pode morrer sufocada por rotinas ou regras. Em suma, bailarino tem mais é que dançar, como Cícero e Karen fazem como ninguém. Bravo pra eles!  Mas o FIDA continua e os dois dançam ainda hoje, amanhã e no sábado. Quem quiser, verá.

Um só nome, dois talentos diante da Graça

Fábio de Mello é um poeta do movimento e da luz: coreógrafo sensível, é capaz de extrair de um artista forças insuspeitadas até mesmo pelo próprio artista. De cultura imensa, consegue buscar em seu manancial interno as maiores delicadezas para transformar em dança, em som, em memória musical, em luz de estarrecedora beleza. Seja no ballet, na ópera, no carnaval, no cinema ou na vida, Fábio de Mello transforma em amor e beleza tudo que toca.

Fábio de Melo é um padre jovem, alegre, descontraído, filho de sua geração. Com simpatia e uma sabedoria invulgar para sua idade, consegue atrair um imenso fluxo de pessoas para uma espiritualidade sadia, solta, humanista. Sua voz bonita e sua atitude humilde, sincera e despojada conquistam os corações sem esforço. Pela arte e pelo amor, inspira e encaminha pessoas para que se voltem para dentro e tenham, cada uma, o seu encontro particular com o Deus que as habita.

Um único nome para duas pessoas tocadas pela Graça Divina, cada um à sua maneira. Se Fábio de Melo, o padre, escolheu o sacerdócio como caminho para expressão de sua arte e de sua fé, Fábio de Mello, o coreógrafo, escolheu a arte, ou foi escolhido por ela, para criar belezas que são, em essência, manifestações de fé e delicadeza - de fé no talento humano e em sua capacidade de manifestar a graça de muitas formas.

O padre e o coreógrafo acabam de se encontrar, no plano da poesia, em uma obra de arte: o ballet "A fé de um povo", criação coletiva da Companhia de Danças Clara Pinto, de Belém/PA, e de Fábio de Mello. O espetáculo, que faz parte do projeto Resgate da Cultura Paraense, criado pela bailarina, coreógrafa e professora Clara Pinto, estreou ontem, 21 de outubro, na abertura do XXI Festival Internacional de Dança da Amazônia - FIDA, iniciado por Clara Pinto em 1994.

"A fé de um povo" homenageia o Círio de Nazaré, marco da cultura religiosa em nosso país. Quem não ouviu falar na corda, nos pagadores de promessas, e do carinho do povo paraense por "Nazinha" - ou seja, Nossa Senhora de Nazaré, a grande Mãe de todos?  Para recriar esse indescritível momento de fé, os coreógrafos escolheram canções populares que moram no coração de todos. Na voz de Fafá de Belém, "Eu sou de lá" e a "Ave Maria" imortalizada por Dalva de Oliveira. E na voz do Padre Fábio de Melo, "Círio outra vez", de sua autoria. Para completar, a força avassaladora da música de Vangelis para o filme "A Missão".

Fábio de Mello, o coreógrafo, num ato de fé na arte - que é sua profissão de vida - adornou com sua iluminação e arremates coreográficos a canção de Fábio de Melo, o padre, criando climas e ternuras especiais para transformar "A fé de um povo" numa espécie de oração plástica, com a qual comungamos, extasiados e felizes. Os coreógrafos Clara Pinto, Welton Bezerra, Valdir Fernandes e Fábio de Mello mergulharam fundo no sentimento do povo paraense e retrataram a devoção à Virgem, a corda, a esperança e a dor com movimentos marcantes e suaves, alternando força e contemplação, angústia e fé, até a redenção final pela Graça. A mesma Graça que tocou ao nascer e toca, até hoje, os talentosos Fábios de Mello que, cada um com seus talentos e dons, se cruzaram no espaço do sagrado e se tornaram parte da criação de uma bela e singular obra de arte.

segunda-feira, outubro 06, 2014

No tempo da delicadeza


Marapé, de Carmela Gross: até 14 de dezembro no mam/sp

Chego quase tarde, no fim do dia, ao Museu de Arte Moderna de São Paulo, para ver Marapé, o mais recente trabalho da artista paulistana Carmela Gross.
- Ah, da Carmela é aquela parede ali - informa, alheia, uma das recepcionistas.
Como assim, só?, estarreço-me.
- Não é não - corrijo, num mísero triunfo sobre a insensibilidade. - Aqui na escada tem também.
E me pergunto como alguém consegue trabalhar num ambiente de arte sem ter a menor conexão com o que acontece ali.
Canga, cuati, guatambu, cutucar, jacaré, maguari, cumbuca, ariri, araçá, jacarandá, guaimbé, buriti, indaiá. Palavras em tupi, a língua geral paulista, que demarcam o território do planalto de Piratininga. São lugares, animais, acidentes geográficos que, já da escada, antecipam o percurso imaginado por Carmela Gross para  homenagear os mais de dois milhões de imigrantes que, segundo o Arquivo Público do Estado de São Paulo, desembarcaram na capital paulista desde o século 19.
O que seria só uma parede, na lógica da moça da recepção, se abre aos meus olhos como uma imensa travessia, em que os nomes, idades e países de origem dos imigrantes compilados por Carmela Gross, imortalizados em placas esmaltadas e coloridas de vários tamanhos, vêem cruzar seu caminho rios, lagos, plantas, animais, em seus nomes tupis. A disposição das placas privilegia claros que sugerem o que há de fluido e desconhecido na aventura quase sempre forçada de partir para uma terra distante, deixar tudo para trás e recomeçar do zero, enfrentar a fúria e a incerteza dos mares, sem a menor ideia de como será, ao chegar ao destino. É um traçado em que dor e esperança se misturam ao tentarmos adivinhar, no olhar daqueles nomes, o que teria acontecido com cada uma das pessoas que nos convidam a partilhar o seu destino.
Os milhares de imigrantes vindos da Itália, da Alemanha, de Portugal, da Áustria, da Espanha e de tantos outros lugares, em ondas que começaram com o fim da escravidão negra e encheram as lavouras de possíveis operários estrangeiros, naquele momento na condição de quase escravos, estão profundamente imbricados no tecido social que formou a cidade de São Paulo. Aqui depositaram suas esperanças, pensaram suas feridas e criaram um caldo cultural inestimável - uma identidade como poucas para a cidade que a obra de Carmela Gross nunca perde de vista. O conjunto de epopeias pessoais que apenas adivinhamos, entre tantas marcas de um tempo de delicadeza, evoca um pouco a ideia que está expressa no próprio nome da mostra: Marapé, que pode muito bem ser mar-a-pé - atravessar a pé um mar imenso, muitas vezes inóspito, que nem sempre é feito só de água, afinal.
Caminhar em meio aos nomes, idades, países, rios, lagos e bichos cria um espaço de reverência por esse passado tão crucial e tão ressonante, até hoje, para São Paulo. Melhor dizendo, para um Brasil que se fez plural, receptivo e múltiplo em sua formação.
Marapé é um poema amoroso que faz, de tantas histórias, vidas e contradições, matéria-prima de uma arte rigorosa, profunda e coerente, marca absoluta do talento de Carmela Gross.








terça-feira, agosto 26, 2014

Salomé

Eliane Coelho em Salomé
Foto: Divulgação - Crédito: Eduardo Moraes

Hoje vejo pela primeira vez Eliane Coelho no palco. Ouvir, já tinha ouvido; vídeos, já tinha assistido. Mas ver, ver mesmo, acontece agora. É 20 de agosto, pré-estreia da ópera Salomé para convidados, no Theatro Municipal do Rio. E muita coisa está prestes a acontecer comigo, embora eu ainda não saiba.
Cortina fechada, olho curiosa para quatorze cadeiras douradas, enfileiradas no proscênio, tentando adivinhar o que virá.
Logo um palco habilmente vestido - e agigantado - com véus num cinza diáfano que caem do urdimento ao chão, pontilhados por lâmpadas redondas de vários tamanhos, em posições estratégicas, se revelará, junto com a poderosa abertura. O clima toma conta de mim instantaneamente.
Desde o primeiro acorde, a música de Richard Strauss contagia pela força que traz. Em Salomé isso não é diferente; a inquietante beleza assinala todos os climas na intensidade certa e com imensa dramaticidade. 
Os guardas do palácio do tetrarca Herodes Antipas falam sobre o profeta Jochanaan (João Batista), preso na cisterna por ter denunciado o casamento do tetrarca com a própria cunhada, Herodíade, que é festejado naquela noite com um grande banquete.
Os temerosos guardas cobrem a tampa da cisterna com as cadeiras que estavam no proscênio. E falam também sobre os dilemas da princesa Salomé, filha de Herodíade, que é objeto dos olhares lascivos do padrasto e dos suspiros sinceros do chefe da guarda, Narraboth. 
Eis que Salomé entra em cena, na pele de Eliane Coelho. Ou vice-versa.
E o palco, antes todo em cinzas e negros, se inunda do amarelo de seu vestido. 
Mas a cena se inunda, mesmo, é de Eliane. 
Uma mudança sutil, mas incisiva, se faz sentir no próprio ar respirável ao primeiro olhar que a adolescente Salomé desfere em cena;  um simples olhar, entre irritado e enfadado, dá a justa medida da força dramática que crescerá com a personagem e nos manterá, a todos, completamente rendidos.  Eliane Coelho é descomunal em talento, técnica e intensidade. Se a voz tem sutilezas e calibres os mais variados, de instigante beleza, o drama é uma sucessão de sustos emocionantes, de um poder eletrizante. Sua Salomé tem uma nota de lirismo comovente, que persiste imbricada no drama e pontua, até o final, as aparentes contradições que acabam por desnudar a verdadeira e humana face da mulher Salomé.
Embora seja muito difícil desgrudar os olhos e ouvidos dela, todo o elenco tem muitíssimos méritos e a direção consegue um resultado bastante consistente e bem acabado. No papel do tetrarca, o irlandês Paul McNamara tem presença marcante e excelente forma vocal. O consagrado Licio Bruno encarna um Jochanaan atormentado, profundo e seguro musicalmente. E o Narraboth vivido por Ivan Jorgensen é de uma delicadeza interpretativa incrível. A voz, linda. Carolina Faria é uma Herodíade algo espectral e ao mesmo tempo icônica, num figurino escandalosamente genial, concebido pelo não menos genial Marcelo Marques. A direção de André Heller-Lopes cria uma dinâmica interessante, que permite a expressão dos intérpretes e, ao mesmo tempo, favorece o ritmo tenso da trama.
Voltando a Eliane Coelho - como fosse possível não voltar! -, sua transfiguração artística no desenvolvimento do personagem é impressionante. O contato com o sentimento do amor e a impossibilidade de sua realização amadurecem Salomé num curtíssimo espaço de tempo. Aos poucos, a adolescente ligeiramente revoltada do início da ópera vai se transformando numa mulher marcada pela tragédia e decidida a cumprir o seu destino. E tudo que acontece no nível da interpretação é secundado por um desempenho vocal estonteante. Eliane Coelho é uma daquelas raras artistas que não têm limites ao mergulhar num papel. E no caso de Salomé, pródiga em momentos que testam todos os possíveis limites, essa envergadura é continuamente exposta - como na dança dos sete véus, que revela mais uma faceta inesperada de um talento sem igual. Com que ousadia e competência Eliane se entrega ao que a cena lhe oferece para explorar!
Os figurinos criados por Marcelo Marques revelam todo seu esmero, conhecimento e arte. Salomé é vestida em tons absolutos - amarelo, branco. Sempre num volume pródigo e ao mesmo tempo fluido, eloquente em cena. Na dança dos sete véus, a roupa integra a coreografia em efeitos de rara beleza cênica, tal a forma com que emoldura os movimentos da personagem. É um momento revelador, tomado por uma magia própria, surpreendente mesmo.
Na cena final, o branco despojado é perfeito para receber o sangue que tinge a dor transfigurada, o misto de sofrimento e prazer que toma conta de uma Salomé que vai além dos mistérios do amor e da morte.
Vale destacar também o figurino de Herodíade, que é parte integrante da composição da personagem e a torna uma figura como que saída de contos de fadas, quase um recorte que flerta com o absurdo e empresta à cena um elemento um tanto surrealista, talvez.
Salomé é sem dúvida um grande acerto. Reúne elegância, rigor musical, beleza, drama. E Eliane Coelho no auge de todas as qualidades artísticas que a tornam uma diva de verdade. Só mesmo uma diva assim consegue nos levar àquele terreno movediço e especial em que se consegue idealizar o artista sem perder a conexão com sua parcela de carne e osso.
O que mais posso dizer senão mil vezes bravo?
Li em algum lugar que é a última vez que canta esse papel. Que pena.
A personagem Salomé sem dúvida sentirá falta dessa sua mais que perfeita tradução.





domingo, agosto 17, 2014

Casa de Cômodos - Carne, osso, sangue nas veias

Foto: Divulgação

Uma costureira, uma família de serviçais negros, um português radicado no Brasil, outro recém-emigrado. Gente comum que divide uma casa de cômodos.
Ambientada com precisão, a casa ocupa a caixa cênica tradicional com despojamento, paleta sóbria e uma iluminação tensa, que filtra com paciência os desabamentos progressivos que estão prestes a ocorrer diante dos nossos olhos.
É assim que começa Casa de Cômodos: dizendo logo a que veio. A beleza visual que envolve cenário, luz, figurino e expressão dos atores é o único respiro a que um público completamente hipnotizado tem direito, antes de testemunhar um engenhoso exercício de monstruosidade humana, finamente articulado por uma direção de mestre e alicerçado num elenco absolutamente consistente. Em Casa de Cômodos, que acaba de encerrar sua contundente temporada no Solar de Botafogo, no Rio, nada é o que se espera. Acima de tudo, é preciso estar atento e forte.
Marcelo Marques nos oferece uma rara oportunidade de assistir a um bom teatrão; trabalha como ninguém as minúcias, refina, refina, refina. Sua bagagem como cenógrafo e figurinista premiado, ator e homem de teatro acima de tudo, é visível a olho e alma nus em cada entrelinha, em cada marcação, em cada movimento da luz no espetáculo.
Casa de Cômodos restaura nossa fé no teatro. Sim, no teatro que aprendemos a amar e respeitar ao longo dos anos, quando encenado como projeto de vida. Teatro amalgamado com paciência e delicadeza nos menores detalhes. Teatro como há muitos, muitos anos, não se vê por aqui.
O texto de Cecília Terrana se insere muito bem no contexto do projeto “Sartre mais uma”; é uma história de pessoas de carne e osso, repletas de nuances, com as máscaras caindo a todo momento. Não há vencedores ou redenção. Mas nem por isso menos beleza. Personagens completos, reais, vividos por seis extraordinários atores, conseguem nos conduzir por suas várias camadas, atravessando virtudes, maldade, preconceitos, arrependimentos, boas e más intenções.
 Nenhum de nós escapa ileso à sucessão de horrores, todos eles tão espantosamente comuns e cotidianos, que os moradores da casa de cômodos desfilam no desenrolar da trama. Quem não viveu uma injustiça, não foi vítima de uma mentira, não conheceu gente capaz de tudo para salvar a própria pele?  Por isso é tão fácil a plateia perder, quase automaticamente, a noção de tempo/espaço e até esquecer que não está dentro da trama, mas é, ela própria, uma testemunha omissa das atrocidades desnudadas em cena. Cada ator... não, acho que neste caso é até perigoso individualizá-los; os atores, envolvidos por uma química rara e intensa, nos confrontam com essa sensação o tempo todo. É um incômodo que beira o irrespirável. Se a máxima sartriana é a progressiva decadência do projeto humano, nós, como plateia, estamos sendo compelidos a participar da decomposição daquelas pessoas e enfrentar nossa própria impotência diante de possíveis situações reais análogas.
E o que nos salva, a nós e aos personagens de Casa de Cômodos? A poética e a magia do teatro. Os risos e as lágrimas. Momentos sublimes, como a partilha de uma refeição pelo casal de serviçais Joaquim e Guiomar, de tal beleza que imediatamente remete à lendária cena de Fernanda Montenegro e Gianfrancesco Guarnieri em “Eles não usam Black-tie”, de Leon Hirszman, catando feijão. Ou a primeira cena do mesmo casal, entoando “Com minha Mãe estarei”, canção tradicional da Igreja e presença constante nas missas da década de 1960. Não há como esquecer a expressão do primo Francisco ao ver pela primeira vez a negra Guiomar, a aflição constante no rosto da costureira Elisa, sempre às voltas com o ofício de sobreviver em um mundo que nega a uma mulher sozinha qualquer direito. Ou o ódio contido do sapateiro Joaquim, incapaz de vencer o medo de se manifestar e perder casa e trabalho. Nem o canto de Oxum de Guiomar, em sua cena final. E muito menos a explosão da personagem Elisa, magistralmente transfigurada pela atriz Adriana Zattar, que nos desfere o golpe fatal, digno de Um bonde chamado desejo.
A beleza plástica de Casa de Cômodos, sempre emoldurada por uma luz que é um verdadeiro subtexto, de tão eloquente, é comparável à da montagem de Ragtime na Broadway, na década de 1990, que tive a sorte de assistir. É o desenho de cores, é a profundidade física das cenas, é a delicadeza de cada detalhe. Não há absolutamente nada fora de contexto em cena. Ninguém desperdiça coisa alguma, não há palavras, emoções ou atmosferas sobrando ou faltando.
Marcelo Marques nos deu o grande presente da temporada: orquestrou uma peça de teatro de verdade, com envergadura, começo, meio e fim. Não poderia sequer dizer que Casa de Cômodos é uma pequena joia; não, de modo nenhum. É o diamante Krupp da cena teatral carioca.