Atravessa-me a melodia de Saint-Säens, tão familiar, e mergulho na agonia que se avizinha, em meio ao mais absoluto e irrespirável silêncio. Quebrado apenas pelo farfalhar dos braços-asas que golpeiam debilmente os intervalos musicais, na esperança de, talvez, reter o último sopro de vida.
Estendo, na alma, este breve e comovente instante de beleza; enveredo por uma dobra no tempo e visito os cisnes que perduram dentro de mim. Mudo eu mesma o cenário, a música, o coreógrafo e, em segundos, estou em pleno Lago dos Cisnes, ao som de Tchaikovsky. Admito que posso estar sugestionada pelo pas-de-deux que virá na sequência, mas não, decerto que não, a cena é outra.
Revejo, entre névoas, um cisne branco que, a despeito da leveza aparente, guarda o mundo dentro de si. No primeiro ato do ballet, debate-se entre o enlevo e a tristeza, preso a um encanto irremediável. No rosto quase juvenil, o sofrimento é cortante e me arrebata. Já não consigo caber em minha cadeira; temo que a tenha feito ranger, gafe imperdoável. A música arremete contra o pobre animal feminino e indefeso, incapaz de vencer sozinho o destino que lhe oferece e, ao mesmo tempo, afasta o amor. Como romper aquele corpo que o encarcera e seguir o coração? A agonia do cisne-mulher é também minha. A eloquência da bailarina em expressar, de corpo inteiro, toda aquela dualidade e impotência, me toma por completo. Perco fácil a noção elementar dos limites entre caixa cênica e plateia. E vou junto, nas mesmas águas revoltas, com o coração na garganta. Em raros momentos de lucidez, percebo-me de novo plateia, de olhos grudados naquele cisne imenso e atormentado, e penso, na mais completa ignorância dos próximos passos do enredo, que a intérprete certamente vai explodir a qualquer momento, tamanha a força das emoções que transmite em intenção e gesto. Tudo aquilo é de uma beleza que me transtorna, e eu não consigo entender direito por que.
De volta ao agora, percebo que o pas-de-deux do cisne branco já começou. Mas não posso ficar aqui, tenho de seguir o "meu" cisne para ver o que vai acontecer.
Dá-se, então, a explosão que eu pressentira. O cisne negro, com o dedo em riste e olhar firme, inunda o palco com todas as emoções antes represadas por seu duplo, o cisne branco. E a mesma bailarina já é outra, altiva, imponente, dominadora. Estranhamente, dentro de mim tudo parece se encaixar. Acompanho a beleza dos seus movimentos, senhora do seu espaço e perfeita no conjunto. Respiro fundo, em estado de graça.
Redesperto no agora, bem a tempo de aplaudir os bailarinos russos, ao final do pas-de-deux do cisne branco. Acho que vir aqui hoje, afinal, não passou de um pretexto para essa inesperada viagem pela memória que me coloca, de novo, diante do cisne que, um dia, conquistou a tabula rasa que eu era, em termos de ballet, e me lançou nos trilhos dessa apaixonante forma de arte.
Hoje, no agora, agradeço a Ulyana Lopatkina pela memorável Morte do Cisne, e a Kristina Shapran e Timur Askerov, pelo perfeito Adagio branco de O Lago dos Cisnes.
E sempre, no coração da memória, agradeço a você, Cristina Martinelli, por ter colocado na minha vida a mais perfeita encarnação dos maiores cisnes da história do ballet.
Cristina Martinelli
Foto: Richard Sasso
Acervo da artista