Tatyana, de Deborah Colker
Foto: Leo Aversa - Divulgação
Tatyana, o espetáculo que a Cia. Deborah Colker acaba de estrear no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, é uma daquelas experiências na vida diante das quais, por um momento, a respiração da gente para e sobrevém a nítida certeza de que estamos próximos de uma espécie de epifania artística. E não revestida de qualquer clima apoteótico, muito pelo contrário, mas de silêncio e delicadeza, de beleza e síntese.
Não toquemos, por enquanto, na história singular da companhia, nem em suas alegrias e conquistas. Fiquemos com Tatyana e Púchkin, com Tchaikovsky e Cranko. E com a profundidade com que Deborah Colker penetrou nas águas de doze mares e cruzou um continente de cultura para chegar a esse nível de essência.
Tudo em Tatyana se comunica imediatamente. A construção coreográfica, cenográfica e estética é de refinada sensibilidade e, ao mesmo tempo, muito fácil de ser compreendida em todos os níveis. As sutis referências de movimentos, atmosferas, cores e drama que evocam o emblemático Onegin de John Cranko não passam despercebidas a quem está familiarizado com o ballet, mas reforçam o mérito da singularidade com que Colker desenvolve sua obra. Tempos de movimentos belos, cuidados, de intensa elegância - e plenitude no conhecimento que dá liberdade aos corpos para construir harmonia.
A ideia central de se aprofundar nos quatro personagens principais – Tatyana, Onegin, Olga e Lenski – e incluir Púchkin como um alter-ego muito participante (vivido pelo espetacular bailarino Dielson Pessoa e pela própria Deborah Colker, em momentos alternados) já tinha sido abordada pela coreógrafa em algumas entrevistas, mas nada se compara à propriedade com que isso se desenrola no palco. As emoções têm cores e formas diferenciadas na personalidade de cada um dos quatro bailarinos que interpretam um mesmo personagem. Dá a sensação de que as imagens e sentimentos se fundem, de alguma forma – e que, mesmo separados, os corpos são um só. Mais importante ainda, o público sente isso na hora e acompanha toda a narrativa como se recebesse um instantâneo dom, por obra e graça da beleza da dança - e de um roteiro musical apuradíssimo, construído no espírito de uma comunhão de 17 anos entre a coreógrafa e o compositor e diretor musical Berna Ceppas. O percurso da música, detalhado num comovente depoimento de Ceppas no super bem-cuidado programa do espetáculo, mostra, além de conhecimento, paixão; além de paixão, beleza; além de beleza, sensibilidade; além de sensibilidade, um profissionalismo a toda prova. Há que destacar o tremendo impacto do recurso de sobrepor as vozes femininas de Elena Konstantinovana Gassionok (em russo) e de Debora Colker (em português) à música de Henryk Górecki, no momento em que Tatyana escreve a Onegin. E aqui só posso me repetir: comunicação imediata, compreensão absoluta, a mais pura dimensão da arte causando o efeito que, em síntese, é sua razão de ser: transformar, salvar e contagiar o público.
Ao longo do espetáculo, a sincronia e o ritmo se completam de tal forma que não há o mais leve sinal de quebra ou fastio. No Ato 1, a movimentação dos bailarinos pelo cenário-árvore de Gringo Cardia é absolutamente suave; todos parecem deslizar o tempo inteiro. E volta a ideia de um refinamento, de uma humanização dos movimentos, talvez mesmo uma libertação inédita da ideia de sofrimento físico que, infelizmente, ainda persegue uma parcela considerável da dança contemporânea que se pratica hoje. E Deborah Colker parece ter ultrapassado essa marca com considerável maturidade, estabelecendo uma nova eloqüência corporal para o seu processo criativo. Não é à-toa que ela mesma diz estar se aproximando, cada vez mais, da condição humana. Sua recriação contemporânea de grandes conjuntos, em analogia estreita com a tradição clássica, em determinadas cenas do Ato II, cria momentos verdadeiramente sublimes, um alento que aponta na direção de uma autêntica revisão conceitual, que forçosamente só pode fazer bem à contemporaneidade.
Uma pulsação diferente marca o duelo entre Onegin e Lenski: a densa dramaticidade, bem marcada coreográfica e musicalmente, sofre, a meu ver, um pequeno abalo com a escolha das armas. Apesar de ficar claro que, ali, a opção foi fugir ao óbvio, as bengalas se saíram razoavelmente bem, mas os leques nem tanto - embora, no conjunto, a cena resulte estética.
Vale ressaltar ainda a propriedade das linhas de luz que se projetam, em teia, no início do Ato II, envolvendo e deslindando, ao mesmo tempo, as transformações dos protagonistas. Aliás, após a visão dessas formas concretizadas no palco, torna-se fácil compreender o depoimento de Deborah Colker ao Globo sobre o uso de um projetor especialíssimo: “Ainda que seja usado apenas em uns três ou quatro segundos, é fundamental.” O movimento e a marcação dessas linhas são, nesse ponto, indispensáveis à compreensão da história. Daí em diante, belezas e mais belezas se revelam continuamente, como as Tatyanas em luta interna no piso superior e as cenas praticamente cinematográficas do reencontro dos protagonistas, fotografadas com luz, num eficiente e contundente jogo de aparições e desaparições que intensifica o drama e, ao mesmo tempo, evoca uma suavidade de desenhos, um aspecto pictórico que cativa profundamente.
O solo de Deborah, marcado por belos efeitos curvilíneos de projeção, pode ser visto como uma celebração, não exatamente circunscrito à história, mas em harmonia com o conjunto. Fui atravessada por uma sensação semelhante à da última vez que Béjart esteve no Municipal com sua companhia - o palco inteiro às escuras e o coreógrafo, em toda sua majestade, emoldurado por um fio horizontal de luz, para receber a homenagem da plateia. As duas situações guardam uma semelhança simbólica: assim como Béjart naquele inesquecível momento, Deborah Colker tem todo o direito de comemorar no contexto dessa obra (provavelmente a sua mais completa e complexa criação até hoje), e bafejada pela alma de Puchkin, numa espécie de mútuo agradecimento pelo bem que o talento de um fez à criação do outro, e que ambos fazem à arte.
Confesso que teria preferido um final sem os efeitos de luz, sem aqueles possíveis flocos azuis de neve que aguaram, em mim, uma apoteose esperada. Coincidentemente, foi o único momento em que o público se confundiu – e hesitou por um instante em sua intenção de aplaudir. Mas este é apenas um detalhe diante da verdade e da força de Tatyana, um espetáculo que enche de orgulho o peito da gente, e que com absoluta certeza será celebrado mundo afora, adicionando novas aclamações à consolidada carreira internacional da Cia. Deborah Colker e de sua notável coreógrafa.
2 comentários:
Maurette, lindo, maravilhoso o seu texto. Fiquei com água na boca pra ver o espetáculo - e o verei, porque retorno ao Rio em setembro. Colker tem uma notável sensibilidade artística que brilha até mesmo nas entrevistas mais despretensiosas que ela dá. Toda a graça e simplicidade da artista revelam sua dedicação intensa e sem frescuras à arte (arte com letra maiúscula - aquela que, como você bem nota, contagia, transforma e salva o público) por isso ela cria tantas maravilhas. Seu texto repõe com propriedade essa característica, já que é bem cuidado, revelador e belo. Bravo, querida (vou circulá-lo no Face)!
Bjs
Dani
Maurette, que lindo o seu texto!!
Vontade doida de ir correndo aí pro Rio de Janeiro, só pra assistir a esse espetáculo e passar rapidinho na praia...
Mas tem que ser em um domingo, porque é dia de forró rs.
Bjs
Ana Laura
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