Olho para ele com o coração parado, fotografado no tempo mas ainda batendo em cada momento passado de insuspeita coragem, medo, dor, tristeza, vontade, revolta, mãos dadas pelas Diretas Já, pânico, raiva, alívio ou felicidade.
O seu rosto está no vídeo, olhos firmes através dos quais algumas eras desfilam. Eras de incertezas e desafios, como um filme dentro do outro. Há vidas inteiras em cada pequena ruga perto desses olhos. Anda mansamente, como se estivesse na rua de qualquer cidade. Como alguém do povo, que recebe e rebate os golpes com aquela temperança típica de quem conhece bem o peso do que vem e do que vai.
Lluís Llach me chegou assim, como que do nada, mas dizendo muito. Começou por dizer que nunca é tarde. Sim, nunca é tarde para a gente se reconectar com a natureza desassombrada típica do nosso coração de estudante, que mora dentro de todos que já passaram, como protagonistas ou nem tanto, por alguma forma de opressão. Em seus olhos de guerra e paz, revejo minha família na sala de jantar da casa de minha avó, a velha televisão de válvula ligada, a acompanhar em preto e branco os passos de ordem-unida do golpe militar de 1964. Meu pai a andar de um lado para o outro, os rostos traçados de angústia. Revejo os pronunciamentos presidenciais, a grade de silêncio, o luto pelos líderes caçados. Revejo o AI-5, quatro anos depois, e o terror da era Médici. E o silêncio tão bem retratado por Ivans Lins e Vitor Martins, na canção “Aos nossos filhos”. E os nossos trabalhos de faculdade, representados com brilhos desafiadores para uma classe ávida e fervilhante de crenças, todas elas contra o mal personificado no aparelho repressivo – que, nos anos da suposta democracia, nunca conquistada mas outorgada, foi sendo substituído por um vazio interminável, que torna o gosto pela liberdade inacessível aos nossos filhos, impossível de expressar para crianças construídas na era do consumo e da irrelevância.
Está diante de mim com sua veemência, seu aguerrido fervor, sua música irrepreensível, seja no clamor ou no romance, no réquiem ou no êxtase. Lluís Llach é uma ponte, sim – uma ponte entre a fé original que carrego e a sensaboria dos dias que escondem inimigos de enorme e cotidiana perversidade, que anestesiam, corroem e diluem aquele sentido tão palpável que eu conhecia muito bem, o sentido de resistir, ainda que com mudas palavras e pouco alarde. Não ouvir Roberto Carlos, não comprar O GLOBO, suspeitar sempre da América, ler Eduardo Galeano, ouvir Mercedes Sosa, escutar respeitosamente os discursos de Fidel Castro, amar Chico Buarque sobre quase todas as coisas, praticamente ajoelhar-se diante de Guernica...
O mais bonito é que não há a menor possibilidade de vê-lo como um romântico estandarte do passado. Llach é uma força da natureza humana, presente como um sinal de fumaça nos céus de sempre. Ele incorpora as renovações sadias da crença e da fé, da coerência, do ato de ser verdadeiro consigo mesmo e com suas convicções. Diante de sua grandeza fico estarrecida, mas nem penso em lamentar não tê-lo conhecido antes, não ter acompanhado sua vida, sua luta, suas canções ao longo dos anos. Antes agradeço porque não é tarde, nunca é tarde para atravessar, com a maior vontade, o espelho daqueles olhos que me confirmam a capacidade de reconstruir a força, rever os parâmetros da luta, acreditar que o que está guardado em mim pode mudar o mundo ainda que em pequena medida, como nos tempos em que, mudamente, resistíamos contra a ditadura enorme. Hoje há outras, diárias e aparentemente mínimas, quase sem valor, mas que merecem uma boa, cotidiana e paciente dose de resistência. E Llach me mostra isso sem qualquer conotação salvadora ou redentora, mas como gente normal, gente igual, gente que, dentro de um calmo silêncio, guarda um vulcão na alma.
Olho para ele com enorme respeito. Escuto suas canções com profunda paixão e um prazer estético sem tamanho, as que fazem sonhar, as que fazem pensar, as que fazem acordar.
Llach é a beleza original de um coração limpo, que nos revigora contra o conformismo, ao mesmo tempo que nos protege a ternura. Cada vez que repito as estrofes das canções nessa sua língua que canta sozinha, e que me esforço por compreender, sinto-me de novo parte de alguma coisa que nunca pode morrer, e que essencialmente não ficou para trás, porque, afinal, malgrat la boira, cal caminar*.
* Apesar da névoa, é preciso caminhar (da letra de Que tinguem sort, de Lluís Llach)
3 comentários:
Maurette,
Não conheço, mas fiquei com muita vontade de conhecer "Lluís Llach", inspirador deste teu belo texto.
Um beijo.
...E eu fiquei a conhecer :))
Tenho religiosamente guardado um LP
de LLACH:-
BARCELONA "Abril 74".
Que saudades daquele tempo.
Nada de confusões,daquele tempo para cá.
Postar um comentário