quarta-feira, dezembro 27, 2006

Um piano com uma história por trás

Há um piano à venda. É um belo Fritz Dobbert de cauda, novo em folha, a laca preta reluzindo, mecanismo e cordas brilhando. A flanela parece que acabou de ser comprada. As teclas em ébano e marfim parecem virgens, as cores firmes, a suavidade que transparece por entre os dedos de quem o toca e o entende.

Esse instrumento que transcende poesia, que reflete no espelho que é o tampo o esforço enorme despendido para comprá-lo, pertence a uma escola de música. Ou melhor, a um conservatório de música, como convém à melhor tradição brasileira. Um conservatório que formou e ainda forma instrumentistas nas mais diversas áreas. Onde se ensina e aprende teoria e prática musical. Um lugar onde se toca e canta por música.

E está à venda, descobrimos por entre os olhos tristes das professoras.

A vida moderna é difícil, a situação do país também. Foi-se o tempo em que o ensino da música era uma prioridade para certas famílias em melhores condições. Quando eu era menina, muitas colegas de escola freqüentavam as cobiçadas aulas de teoria e piano, sonho de poucos (eu, nem pensar, quem dera!). Mas esses poucos ainda eram suficientes para manter em boa posição os conservatórios, onde pacientes mestres dedicavam-se aos alunos, às audições, aos exames no Rio de Janeiro. Uma amiga da mesma geração me contava, há alguns anos, que em sua cidade usavam uniformes com dragonas indicativas do ano de estudo nos ombros, e que os exames anuais eram uma verdadeira agonia, com direito a suor nas mãos e dor-de-barriga...

Os conservatórios funcionavam com o rigor característico do modelo educacional da época. Só que o mundo foi virando e desvirando, a vida tornou-se muito mais veloz, as meninas deixaram de cultivar virtudes e talentos próprios às donas-de-casa para buscar espaço em ambientes antes privativos dos homens, e nesse roldão a música foi sofrendo abalos sucessivos. Depois vieram os anos 70, tempo de transgredir e transformar... A guitarra de Jimmi Hendrix horrorizava os mais ortodoxos e hipnotizada os mais jovens com sede de liberdade para desconstruir e criar. A vida intelectual brasileira era dizimada pela ditadura militar, assim como a economia e o sistema educacional. Seguiram-se tempos mais duros para o emprego e o ambiente social, num processo sem volta. E as transformações levaram consigo muitas tradições importantes na nossa cultura, entre as quais vários conservatórios de música, sobretudo no interior.

Fora-se o tempo em que um entusiasmado Heitor Villa-Lobos recebia carta branca do Presidente da República para transformar o país pelo canto coral e reunia 20 mil vozes, pasmem, 20 mil vozes no Maracanãzinho para celebrar o trabalho que implantara em praticamente todas as escolas públicas do Rio de Janeiro. O maestro acreditava nisso, provou que podia, mas estamos aí até hoje a nos debater em cima das mesmas questões. Nem quando os Titãs escrevem que "a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte", as pessoas entendem. Aquelas aulas de música eram vitais para inspirar, instigar e tirar as crianças da pasmaceira, da mesmice e fazê-las descobrir o mundo através da única linguagem que, até hoje, se provou universal. Esperanto? Uma bonita ilusão. Religiões? Olha o resultado nos jornais todo dia. Só na música as pessoas se encontram de verdade. Só a música é capaz de unir, numa mesma orquestra, africanos, neozelandeses, israelenses, palestinos, vietnamitas. E mesmo que aquelas mesmas crianças não dessem pra músicos, o ensinamento plantava-se dentro delas para que soubessem apreciar, e ensinar aos seus filhos, que um dia existiu um Mozart, um Bizet, um Villa-Lobos, um Carlos Gomes. A música será talvez a única tradição que se mantém praticamente intacta através dos tempos, pois possui som para se guardar na memória. Um livro pode-se queimar, mas a música pode-se lembrar, reproduzir, escrever de novo.

Ficamos piores sem a música. Aliás, ainda que às vezes a gente não se aperceba disso, ninguém vive sem ela, seja qual for o gênero da preferência.

O conservatório do interior possui um piano, e uma bela história de realizações pequenas e grandes. Possui a dedicação de vidas inteiras ali depositadas, empenhadas na plantação diária da sementinha da música, essa mesma que abre as portas do mundo. E possui também dívidas, essas coisas comezinhas que nos atacam no dia-a-dia, é um aluguel, é um imposto, é menos um, dois, mais alunos, é o pagamento de professores, luz, gás, telefone... Dívidas que um piano transformado em dinheiro pode pagar, sim, mas o que paga o piano e sua história? Os jantares beneficentes cuidadosamente arranjados para pagar suas prestações? As vaquinhas de última hora, quando o dinheiro faltou? As personalidades que passaram por suas teclas reluzentes e delas tiraram sons à beira do divino? Os corações que se alegraram com sua música a espalhar-se no ar? Os alunos de primeira viagem, que sentaram-se ao banquinho com as mãos frias e o coração aos saltos, mortos de medo e de emoção, na primeira audição?

Vende-se um piano com uma história. Uma história com suas recordações. Vendem-se lembranças que têm som, têm eco na alma. Triste é o tempo em que se faz necessário transformar em mercadorias as peças sem as quais os sonhos não podem existir.

domingo, dezembro 24, 2006

À cata de um sentido em meio ao alvoroço

Gosto de Natal. Adoro as comidas. E gosto também de dar e ganhar presentes. E dos rituais, arrumar árvore, presépio, mensagens... sobretudo lembranças boas e confortáveis da infância, como o refresco de vinho com água e açúcar a que sempre tínhamos direito em quantidades ilimitadas, as rabanadas em calda (raras hoje em dia), toda aquela azáfama familiar na cozinha, um cheiro bom de azeite português a circular pela casa...

Nesses dias de dezembro, em paralelo à contabilidade espiritual do ano, às pequenas e grandes frustrações e alegrias, tenho sentido pânico nas ruas. Nunca o burburinho da multidão acotovelada entre pacotes e ataques de nervos, a disputar espaço nas calçadas, nas lojas, nos locais públicos, me incomodou tanto. A um grande desconforto no estômago somam-se uma grande sensação de inutilidade e impotência, uma tristeza impregnada de vazio. As passoas parecem desesperadas por comprar, comprar, comprar, numa falsa e desenfreada euforia... Parecem estar todas no piloto automático, correndo atrás de coisas, coisas das quais não podem prescindir de jeito nenhum, e tudo tem que ser feito rapidamente, como se estivessem a contar os segundos que as separam da noite de Natal.

Noite de Natal... Natal quer dizer nascimento. A noite de Natal existe para pensarmos no nascimento do Menino Jesus, de forma pobre e precária, quase sob as estrelas... Existe para reencontrarmos tudo aquilo que é simples e puro por dentro... Existe para lembrar, justamente, que bens materiais nada significam. O importante é a estrela. É a luz que transforma as pessoas e as faz melhores.

Sim, o Natal é festa católica. É chamado "a data máxima da Cristandade." Mas nem por isso deveria ser circunscrito aos crentes. Mesmo um ateu pode enxergar beleza no simbolismo da manjedoura. Naquele momento de paz e ternura em que um pequeno grupo de pessoas se ocmove diante da majestade genuína de um recém-nascido, alguém que acaba de abrir os olhos e o peito para o mundo, seja santo ou não.

A tradição da troca de presentes vem dos Reis Magos, aqueles que viajaram céus e terras para entregar ao Menino Deus os seus dons. Sim, dons! Magos por certo, trouxeram ouro, incenso e mirra por seu valor verdadeiro, não pelo comercial. A pureza do ouro, a depuração pelo incenso e mirra. Assuntos espirituais, dons para proteger o menino. Não bens a serem consumidos.

Pois hoje, nas ruas, a olhar a multidão aflita dessas últimas horas, procuro em vão o sentido das coisas. O que se vê são apenas os sentidos. Todos querem tocar, cheirar, apalpar as coisas que não são do espírito, mas são do Natal. Natal igual a comida, igual a presentes, igual a ser, por um dia, algo que não se é. Natal onde o presépio fica esquecido, é apenas mais um item na decoração - de preferência, motorizado e todo iluminado artificialmente.

Ando pelas ruas com vontade de gritar... Desisto, recolho-me. Ando à cata de algo que faça sentido no meu sistema solar, um espelho no qual possa penetrar e olhar o Natal como São Francisco olhou sua cidade ao sair, nu, em busca do sentido da sua vida de santo, o santo que mais amou os pobres e os animais, e que escolheu a vida natural para expressar o seu amor por Deus e pela humanidade.

Amo o silêncio da noite estrelada em que Deus deu ao mundo o seu filho, o presente máximo e mais valioso, para que nos trouxesse a luz com que iluminar a caminhada. Amo o sentido do presépio, a gente comum que torna viva a santidade, pois santifica a vida em si a cada momento, só por existir, por sorrir acima de tudo, e por viver o Natal a cada dia na comunhão, na partilha e na fraternidade. Que enxerga o próximo como a si mesmo, o principal e mais difícil ensinamento daquele menino que um dia...

Ah, deixa pra lá. O importante é que o Natal existe, está no coração e não nas prateleiras das lojas onde, até próximo da meia-noite, muita gente se debaterá por um objeto qualquer que se pareça com a felicidade.

Que, como diz aquela velha e querida canção natalina, é brinquedo que não tem... Sim, porque não é brinquedo, é dom. E só pode mesmo estar dentro da gente...
Que o Natal dentro de ti possa ser muito, muito feliz.

sábado, dezembro 09, 2006

Dores de amores, essas passarão

Não importa a idade: no amor somos todos adolescentes. Os hormônios percorrem o corpo com aquela velocidade estupenda que nos faz viajar a jato do céu ao inferno em segundos, que nos dá falta de ar, taquicardia, que nos faz rir e chorar de qualquer coisa, por qualquer coisa, ao sabor do tanto que vai no peito, tanto que quase arrebenta a todo momento.

Adolescentes de fato e de direito na alma, confiamos. Entregamos. Aceitamos. Adoramos. Rimos sozinhos o tempo todo, lembrando dos tudos e nadas, sonhando com a hora de desafogar o amor, reparti-lo com o corpo, os olhos e a alma do amado, deixá-lo correr livre pelas praias da alegria de estar junto, mal seguramos os nossos sentidos, não pensamos em outra coisa que não o objeto do amor, ainda que às vezes nem consigamos nos recordar direito dos traços do seu rosto... O amor, na pele do amado, não tem defeito, tudo o que ele ou ela diz é lindo, interessamo-nos por tudo o que faz, gostamos de quase tudo o que gosta - e, se não gostamos de tudo, "perdoamos" na hora o que não nos agrada tanto assim. É tão bom viver da graça do amor!... Essa graça infinita que nos toca, nos dilui e engrandece... E que nos faz enxergar o mundo das alturas, com as cores alteradas para melhor, e nos torna bem mais pacientes para com tudo o que não seja o tempo-espaço que nos separa do ser amado.

É uma adolescência rica, viva, que funciona do mesmíssimo jeito em qualquer corpo, de qualquer forma, em qualquer fase da vida. Na linha do tempo, o que a distingue da adolescência propriamente dita é apenas um detalhe: na maturidade sabemos que vai passar. Jovenzinhos, acreditamos que vamos morrer se algo der errado, que não aguentaremos o baque, que nada além do amor é possível.

Na maturidade as coisas florescem iguais, as esperanças nascem iguais, chegam sem aviso e te envolvem na ternura, na alegria e glória de apaixonar-se. Estás assim a navegar no vazio, muitas vezes sem sentir - e de repente te cai alguém na vida. Que conheces na rua, na livraria, no trabalho, num bar... ou quem sabe recebes um email de alguém que leu um dos teus escritos? Não importa de onde vem o canto da sereia, mas ele chega e tu, por alguma razão, o escutas... e gostas... e teu coração o segue, a princípio devagar, ensaias um ar de engano, finges que não é bem assim, mas as cordas do corpo tremem, vibram daquele mesmo jeito que já vibraram um milhão de vezes, e agora nada mais parece fazer sentido sem essa expansão, sem esses balões de gás a ocupar todo o espaço do estômago, amassados pela dúvida, apertados pelas vias respiratórias... pronto, o amor tomou-te.

É infalível: tentas parecer adulto. Ou acreditar que és sério, que essas coisas não te afetam, que desta vez vai ser diferente... Mas há algo em ti que não te obedece, que teima em entregar-se ao sonho, à contemplação do amor, ao êxtase do amor, à fome que ele provoca e que, num minuto qualquer, torna-se insaciável, compulsiva, profunda, imemorial... E parece impossível viver longe do amado, qualquer cama fica enorme sem aquele ser ao teu lado, as noites ficam difíceis de varar, sentes saudade até quando estão juntos, o acordar só é bem-vindo se tiveres aqueles olhos a se abrirem sorridentes, gratos pelo encontro banhado pela luz do dia que começa... é isso, o amor povoou-te.

Enamorados, acreditamos em tudo. Só vemos o que queremos ver, só ouvimos o que o coração insiste em dizer (ou inventar)... Deletamos tudo o que não combina com aquele doce e fundo estado de sentir, aquela disposição infinita para ser feliz e fazer feliz, aquele gozo fácil de pequenos detalhes, cumplicidades, coisinhas dos dois... Esquecemos de pronto qualquer olhar mais avesso, um gesto contrário, um passo para trás... Uma certa dor nos espreita, mas a negamos e voltamos a mergulhar no ser-feliz-de-fadas que o amor plantou dentro da gente...

Mas a maturidade tem suas agulhas, ah tem. E às vezes elas nos espetam - de leve, mais ou menos, ou com toda força. E, muito a contragosto, começamos a perceber os sinais do amor que se vai, ou que ainda não foi mas quer ir, ou que disfarçou-se e agora mostra a cruel face do adeus. Mas não, não é possível, não queremos ver, vivemos ali a nossa verdade pura e abundante, ofertamos o melhor e o mais precioso, isso deve bastar, não?...

Nem sempre basta. Você não percebeu, porque não podia ou não queria ou não aguentava, mas o outro já não respira no mesmo ritmo. Já não te telefona tantas vezes, já não te sussurra ao ouvido, não dorme bem ao teu lado, tem tanto mais o que fazer... Esquece muitos combinados, não responde tuas perguntas, não quer tuas mãos dadas, os carinhos escorregam vãos pela pele ausente...

E um dia tu descobres que o teu amor, aquele lá que nutriste dentro do teu coração, está só. Que já não há comida. Que os sonhos se desentenderam. O objeto-amado-ausente já partiu de ti. Enquanto tu anseias, ele vaga. Se sonhas, ele viaja. Foge-te aquele espaço onde ambos cabiam tão confortavelmente. E, por mais que o tentes, não o encontras mais...

Te custa crer, eu sei. Uma dor fina vai penetrando os ossos da alma até quase rebentarem, e lá dentro cresce, cresce, cresce... Não te conformas, não acreditas, mas é em vão. Foi-se o amor, e o que vês é um estranho agora. Bate um constrangimento, entra um véu no caminho, e o coração comprime-se tanto no peito que parece que nunca mais conseguirás respirar de novo, que viver é muito mais perigoso do que parece, quando se enxerga o mundo com cara de todo-dia.

Para o sofrer de amor, não existe todo-dia; existe o dia-após-dia depois do amor acabado, sempre tão penoso, difícil de palmilhar, cada degrauzinho mais alto que o Everest... Um dia chora, outro finge que ri, depois de amanhã é uma febre de 40 graus, e segunda-feira - certo, Drummond, é isso mesmo, ninguém sabe o que será.

Com quinze anos no corpo, a certeza é só uma: morrer é uma questão de horas.

Já com quinze anos na alma e alguns, muitos mais no corpo, certezas já não são favas contadas. Sabe-se apenas que aquilo já aconteceu uma, duas, infinitas vezes... e que, um dia, após muitas esquinas, a gente vê que a dor ficou para trás. A gente sente que consegue respirar, ler, conversar, trabalhar, ir ao cinema. Dançar sem peso no coração. Perdoar praticamente qualquer vacilo, seu ou do amado de então. E evoluir na graça de saber-se vivo, pronto, nem mais nem menos. Normal.

Até que isso aconteça, porém, há que carregar a dor no silêncio da alma, ou aos gritos no escuro, desesperar-se na esperança do momento em que tudo vai passar - e abraçá-lo com o coração quando ele, enfim, chegar.

terça-feira, novembro 14, 2006

Jorge Palma

Ela estava lá há um bom tempo, como quase tudo que se quer baixar no eMule. Hibernava, esquecida e desesperançada, entre as centenas de canções da minha fila. E de repente, eis que de repente, encontro-a ontem inteiramente verde, o que significa pronta, baixada, liberada: "Like a rolling stone", de Bob Dylan, cantada pelo Jorge Palma - esse grande, grande artista português que só vim a descobrir há uns poucos meses, mas que fixou de vez residência entre os queridos da minha alma.
Não posso mentir: a gravação não é apenas caseira, é horrível. Escutar qualquer coisa, em meio ao burburinho geral e ao som abafado e distante, é uma façanha. Apenas adivinha-se ao longe o que seria, deveria ser, uma grande interpretação de Jorge Palma para um clássico da minha geração e da anterior, mas o resultado é precário. Dá a impressão que foi feita com um gravador desses pequenos, de repórter, por cima de um muro ou de um mar de gente talvez.
Mesmo com tudo contra, "Like a rolling stone" me emocionou. Porque só um fã de Jorge Palma, em seu ardor para proteger, preservar e cuidar de tudo o que diz respeito ao Mestre, poderia tê-la feito.
Jorge Palma é um desses artistas que os tempos velozes não fabricam mais. A um imensurável talento e bom gosto estético, sem falar nas ricas referências de seu vasto universo cultural, somam-se os dons do músico, irretocável ao piano, do compositor profundamente fértil e do arranjador de primeira. Em suma, é um verdadeiro escândalo.
Desde que o descobri, numa tarde perdida de junho, quando um amigo fez-me a gentileza de oferecer "Diz-me tudo", uma canção de outros autores que foi tema de uma telenovela em Portugal, algo em mim mudou. Já na introdução pude notar que estava diante de algo diferente, e senti que devia prestar muita atenção. Daí para cá, lancei-me à busca por esse pedaço que faltava no quebra-cabeça do meu sentimento da arte: ter Jorge Palma bem ao meu lado, um companheiro de viagem como o foram, desde sempre, Chico, Caetano, Gil, Milton, Ivan Lins e tantos outros sem os quais não poderia viver da forma que vivi até hoje.
Nessa busca encontrei toda a beleza das canções, e a alma do artista a escorrer por elas. Deparei-me, também, com vários lados de Jorge, um tipo verdadeiramente afeito à aventura de viver, encantador, disponível, muitas vezes perdido também. Mas o que realmente me explicou Jorge Palma foi o contato com seus fãs.
Cada fã de Jorge Palma é uma espécie de tradução da sua obra, um guardião sempre a postos para proteger alguma coisa. Uma canção, um fragmento de canção, um velho long-play, um retrato amarelo, as bebedeiras, os comprimidos, a letra das músicas que ele esquece, os atrasos para começar os shows... nada escapa a essa verdadeira legião de memorialistas que, unida, cuida dele e ainda oferece, generosamente, tudo quanto é informação relevante para quem, como eu, apenas começa a buscá-lo.
Fã de Jorge Palma é quem está sempre disposto a segui-lo na estrada, viajar umas centenas de quilômetros, ficar sem dormir e ir trabalhar no dia seguinte. É a turma que está pelos 50 e também a galera que está pelos 20. É quem se sente só mesmo acompanhado, é quem se estranha no espelho mas é capaz de voar no trapézio e dizer "Bom-dia!" ao mundo quando se enamora. É toda uma tribo que passeia entre o avesso e os prodígios, mora no bairro do amor e acredita que não há passos divergentes para quem se quer encontrar.
É alguém que grava "Like a rolling stone", mesmo que não dê pra ouvir direito, só para que o momento não se perca.
Jorge consegue esses milagres, será talvez o único num tempo meio sem cor, cada vez mais longe da poesia. Mas Jorge é poesia, e enquanto poesia desfaz as rimas previsíveis, solta-se no ar preso apenas no fio elástico da sua arte, para que esta o leve aonde não poderia ir apenas com suas próprias pernas.
Jorge Palma, sempre com o coração às tantas, emociona de verdade. É a melhor fotografia do sonho que começa e acaba, para começar de novo, nas canções. E os fãs, que tudo sabem e guardam no silêncio, são capazes de adorar, redimir, perdoar e amar incondicionalmente. Cuidam dele, se o momento exige; erguem-no à glória, quando é tempo de glória. É como uma família, uma estranha corrente de luz a circundá-lo.
Por isso é que essa "Like a rolling stone" furtiva, confusa e abafada é muito, muito importante. Porque parece dizer ao Jorge que, onde quer que ele for, alguém irá ao seu encontro na estrada. E estará com ele para o que der e vier.
Ave, Jorge Palma, e seu séquito "palmaníaco". É uma honra enorme, para mim, fazer parte dele.

quinta-feira, novembro 02, 2006

De amor

De amor, sim, o meu coração fala. E porque hoje, por estes hojes, o amor voltou-me à pele - e espraiou-se sobre mim com a ternura e a fúria das marés, com a carícia de um beijo de espuma e a força das vagas a se quebrarem sobre as rochas. E, se faz-me desmanchar no ar de tanta felicidade, empurra-me também pelo despenhadeiro das angústias, arremetendo-me rumo ao nada à velocidade da luz.
Entre o êxtase e a incerteza, vivo a reaprender o caminho de um outro olhar, que ora perto, ora distante, contagia-me de doçura. Com o amor vieram memórias ancestrais num novo corpo que me olha com olhos pequenos e vivos, toma-me como um leão faminto no deserto, e ainda assim guardando toda a força num silêncio turvo de emoção... Um amor feito de palavras habilmente tecidas, mesmo quando emprestadas a livros, poemas, lembranças... de delicadezas armazenadas, antigas e perfumosas... e de distâncias vencidas, sonhares acordados, esperanças alvoroçadas, caminhadas sob o luar e a brisa noturna da praia...
E também de sustos contidos. E medos. E recuos, vieses. Amor por vezes entretravado, presa de dúvidas. E saudades, horas de não entender, exílios no corpo, tempo sem beijos, a respiração custosa, a alma com falta de ar.
Amor que me fala aos pedaços no ouvido, como se falar inteiro fosse de repente doer, fazer fugir a alma entre os dedos... enquanto arde o suspiro, o bafejo de felicidade, palpitam as veias amedrontadas, e se faltar o sangue, e se sumir-me a cor, e se eu não puder suportar esse excesso de vida? Vida que ele próprio traz e devolve, esse amor, e altera o corpo todo, uma cascata de luz a inundar-me e a vazar por todo lado, amor, esse amor que peralteia em torno de nós como um destino novo, pronto para usar e abusar!
Sinto falta do sotaque desse amor a enternecer-me os sentidos, de sua singularidade e presença a um tempo seiva e pão, um leito macio feito de pequenas histórias e ternuras, o marulhar da alegria amorosa sobre o cascalho das noites, o aljôfar que
chega com o dia e me toma em seus braços, suaves e saciados, leves como o lençol que nos vem velar o sono.
O meu amor é uma segunda pele na alma, um corpo gêmeo de mim, uns olhos que tecem carícias molhadas de luar.
Há horas em que se esconde, há dias em que parece arrefecer, há instantes em que se ausenta de si mesmo. E aí minha alma escorre pelos cantos, a buscá-lo onde estiver... E meu peito se agita quando não o consegue encontrar, o medo tenta forçar a porta, arrancar-me o ar... mas o meu amor, lá no fundo bem dentro de mim, deixa escapar um suspiro de saudade, põe sua mão na minha, reencontra minha boca e respira-me devagar, com cuidado, com certeza. E minha alma, suavemente, recupera a cor.

quarta-feira, agosto 16, 2006

Flip 2006, na palma da mão - I

Desde 2004 que a Festa Literária Internacional de Parati me vicia irremediavelmente. Tem o sereno e o ancestral do ambiente a construírem pontes, tem a franqueza da palavra que é partilhada sem avarice, a informação em doses generosas, a normalidade medida pela quantidade de monstros sagrados soltos na rua, a se misturarem aos mortais. Por essas e outras, sou uma dependente confessa da Flip, para onde me dirigi no último dia 9, como faço sempre, uma espécie de rito sagrado a dobrar meu ano literário.
Cheguei cedo, depois de uma viagem algo difícil, administrando um sensível estômago por entre as curvas sinuosas de uma estrada longe da perfeição. Por volta do meio-dia, já está o clima instaurado; a imponente Tenda dos Autores e seu colorido, a Livraria da Vila com sua organização paulistana, os livros classificados por mesa, até edições em línguas originais.
Dei a volta habitual, reconhecendo e repalmilhando o terreno; alcancei a praça, o célebre Bar-Restaurante Coupé com seu charme antiguinho, as ruas que vão dar nas correntes próximas do mar. Ao cruzar a pontezinha embandeirada entre a Flip e a Rua do Comércio, vieram as saudades claras e finas do ano anterior, recheadas da memória de meu encontro com um homem chamado David Grossman.
De tudo o que vi e ouvi, vivi e recebi na Flip 2005, ele foi certamente o melhor, o mais perturbador e mais pungente. David Grossman me chegou na última mesa do primeiro dia, com sua simplicidade boa, um certo ar de sem jeito e uma sinceridade sem limites. Conquistou-me com a verdade da experiência de vida e a transparência das almas vastas. Com ele percorri a Faixa de Gaza e pude compreender sentimentos que, até então, nunca me haviam atingido de verdade. O que antes era informação, fatos jornalísticos, transformou-se em emoção, num certo saber o outro que me modificou profundamente.
Senti-me imediatamente próxima daquele homem do seu tempo, revolucionário a seu modo, surpreendente na sua verdade. E busquei o momento de continuar a conversa, por conta de uma intimidade brotada, uma súbita igualdade incorporada à alma. No domingo, após uma das mesas da tarde, fez-se a oportunidade. Cumprimentei-o e falei sobre o que sentira ao ouvi-lo. Com a mesma naturalidade, pedi para tirar uma foto, com direito a sorrisos e gracejos: "Mas preciso saber mais sobre você; assim fico sabendo com quem estou sendo fotografado..." Tudo tão simples, tudo natural, como diz a letra de uma das músicas "natureza" da minha juventude.
Na mesa de encerramento, que trata dos livros de cabeceira dos escritores convidados, David falou da Metamorfose, de Kafka. E reafirmou seus compromissos da vida inteira com a humanidade e a paz, "como homem, como pai de família, como ser humano, como escritor e em todas as instâncias da vida."
E depois, um brinde à emoção: a Flip 2005 foi encerrada ao som de The Sticker Song, um hip hop composto por ele, em parceria com um grupo musical israelense, com base nas palavras de ordem encontradas em adesivos que ele colecionou, comuns em seu país e que carregam as mais variadas mensagens.
Saí na correria para buscar um sanduíche antes de retornar ao Rio; na volta à pousada, cruzei a ponte e lá o encontrei de novo. Simpático e solícito, veio apertar-me a mão e então perguntei sobre a canção. "Você só tem de se lembrar do nome Hadag-Nahash". Prometi lembrar-me e, graças a isto, pude obter na Internet uma versão para download que tornou-se uma espécie de hino em homenagem a esse homem tão importante para a humanidade, um escritor prolífico e imaginativo, pacifista e militante na rota dos sonhos de paz no Oriente Médio, com quem passei a me corresponder desde então.
Ainda estou na cabeceira da ponte, é 2006, a Flip é nova e cheia de experiências, sentidos e sabores. David, ou a memória renovada do encontro, ainda está comigo na travessia. O domingo final já não tarda, e ainda não posso saber o que ele me trará.
Três da tarde, encontro de Nicole Kraus com Edmund White, rico em experiências diversas e tocantes: a escritora qualifica como "magnífico" o romance "Ver:amor", um dos mais importantes da obra da David Grossman. White concorda e conta que escreveu a crítica do livro para o New York Times, quando foi publicado nos EUA. E então, assumindo um ar mais sério, comunica à platéia: "A propósito, tivemos hoje a notícia de que o filho de David Grossman foi morto num ataque na fronteira do Líbano".
Morri enquanto minha alma gritava, e a dor veio inteira, como uma intoxicação por raiz-forte. O ímpeto de sair correndo da sala foi contido pelas lágrimas que brotaram imediatamente, como se a alma tivesse sido passada numa máquina de afinar macarrão. Desapareci na cadeira e lembrei-me de todas as vezes que, desde a invasão do Líbano por Israel, pensei no rapaz - sargento do exército israelense - e pedi a Deus, egoisticamente, que ele não tivesse sido enviado para lá. Há que pensar na humanidade, reza o politicamente correto, e não somente no nosso quintal. Mas é inevitável, quase que um reflexo, lembrar primeiro de quem se conhece. O David é minha referência e sempre lamentei a sua aversão natural pela Internet, que me impede de mandar um email após cada notícia ruim sobre os conflitos na área.
Penso na dor daquele homem, uma dor que ninguém conhece ou sequer chega perto. Apenas três dias antes, ao lado de Amos Oz e A. B. Yeoshua, David tinha tomado posição em favor de um cessar-fogo urgente, temeroso quanto às proporções que a guerra tomara. Penso no pacifista que me ensinou que é preciso vestir de verdade a pele do outro, buscar o que de melhor existe nele, para chegar à paz sonhada há tantos milênios. Penso no duro teste para o militante comprometido com as causas da humanidade, que tantas vezes se despiu de qualquer caráter nacional para falar unicamente dos seres humanos que precisam ser salvos e ter sua liberdade e dignidade restituídas.
Diante da tragédia, David é apenas um pai que enterra o seu amado filho, que lhe foi tirado na flor dos 20 anos. É igual a tantos libaneses que perderam seus filhos num conflito de ódios baratos, impensável em contexto já tão conturbado. É igual, também, a tantos palestinos que têm a mesma sorte todos os dias.
Igual, sim, mas há uma diferença. David Grossman colocou sua vida a serviço da paz, do entendimento, da justiça. E sempre viveu do combustível de sua entrega. A promessa de ser, sempre, uma voz contra o arbítrio de toda sorte, vem sendo cumprida à risca, com a maior presença e honestidade. Agora, sente esse mesmo arbítrio cortar-lhe a carne no que há de mais precioso, mais profundo, mais básico na vida de um pai ou mãe: proteger o filho, cuidá-lo, dar-lhe segurança.
Meu coração está com David Grossman em seu luto. E, mesmo diante do horror que vivemos, penso em tudo o que aprendi com ele: só podemos nos salvar se tivermos a coragem de enxergar o outro, conhecer sua alma, e ver que, afinal, ele é igual à gente.
A ele, a minha homenagem, o meu respeito e a minha eterna solidariedade.

sexta-feira, julho 14, 2006

Auto-estranheza

Hoje me estranhei comigo mesma. Isso há tempos que não me acontecia, e confesso que não estava lá muito preparada para passar o dia com um certo incômodo na área do estômago, a avisar-me que as coisas não andavam bem.

É difícil desculpar-se consigo mesmo, justificar-se diante da própria alma, dar explicações com o ego olhando pra nossa cara. Até porque, ia adiantar o quê mesmo? Aos olhos interiores, tudo é transparente. O malfeito é malfeito, o descuido é descuido mesmo, de nada servem palavras bonitas. A alma se desloca, o sentimento de inadequação penetra-lhe os poros cansados.

Fiz bobagem, sim. Precipitei-me em terrenos que não adivinhava movediços - e de repente vi-me tocando sem autorização o intocável: os sentimentos alheios. É ruim olhar e ver que, de fato, "foi mal", como diz a geração da minha filha. É difícil e sem jeito - e nem há como despistar. Pra quê, pra quem? O jeito é olhar de frente para a dor e o desconforto, a incapacidade, o gesto infeliz, a coisa errada no momento errado, atingindo o alvo errado. Ainda que o passo não tenha sido bem avaliado, o que importa é mesmo o resultado, não?

Contabilizei resultados ruins hoje. Reversíveis, possivelmente, mas ruins. Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu, disse uma vez Chico Buarque; mas tem dias que a gente age como quem quebrou porcelana rara. E nessas horas é que é difícil consertar.

Sinto-me assim, hoje; falei antes de pensar, fui com muita força na curva e o retorno ficou prejudicado. Reconheci, desculpei-me, mas sinto-me mal. O estômago ainda anda oprimido. O desconforto não me abandonou.

Mas a reflexão é útil; é bom saber o erro bem visível, por mais que incomode. É bom saber que, mesmo quando se erra, a meta é não errar, e esta persiste. É bom saber que, em meio a tantos estímulos a nos cegarem os sentidos, ainda podemos enxergar, com toda clareza e verdade, a parcela de responsabilidade que nos cabe por cada palavra que sai da nossa boca, por cada gesto canhestro e mal calculado. Alguém com certeza será atingido - e os resultados podem ser imprevisíveis.

De frente para mim mesma, encaro o espelho da alma. Está mais do que na hora de comprometer-me com a minha própria humanidade.

quinta-feira, julho 13, 2006

Paixão renovada pelas palavras

Lá vem a Flip de novo... e lá se vai a minha alma, de armas e bagagens, pra Parati. Pelo terceiro ano consecutivo, aproveito a felicidade mansa de presenciar encontros com o que há de melhor no pensamento contemporâneo, na literatura urgente ou na memória das grandes obras.
A Festa Literária Internacional de Parati não é festa por acaso, nem é sucesso por acaso. É festa porque celebra, de fato, a literatura como ponte entre culturas, cabeças e ideologias. Como flagrante do tempo de hoje ou retrato, em vivas cores, do tempo de sempre. E é sucesso porque identifica e atende muito bem à demanda pelas palavras verdadeiras, vigorosas e sem maquiagem que constroem o agora. Ou pelas palavras emblemáticas que nos fazem visitar as fronteiras do tempo. Enfim, a paixão por palavras tem público, e que público! Gente que não se perturba diante da perspectiva de passar, por exemplo, uma manhã inteira sentada numa fila civilizada, em plena Copacabana, para garantir seus ingressos logo na primeira hora, e de uma só vez.
Participei ontem dessa fila - que na verdade foi o meu primeiro evento pré-Flip 2006. E confesso que me diverti com o clima descontraído que se criou na antiga galeria do Bruni Copacabana, o saudoso cineminha que, demolido, deu lugar à ampliação da sofisticada loja Modern Sound, a meca dos fanáticos por música onde seriam vendidos, a partir do meio-dia, os almejados ingressos para a Flip.
Rato de livraria que se preza tem prazer em compartilhar. E na fila da Flip não foi diferente; as pessoas se organizavam naturalmente, procuravam acomodar-se e ajudar as outras, promover tranqüilidade e criar alguma graça com que passar o tempo - tudo isso de um jeito bem carioca, sem estresse.
Um pouco de cansaço? Sim, vá lá, concedo. Mas foi quase nada. Eu, que cheguei munida de um prático banquinho de armar, nem precisei dele; acabei emprestando e me sentei no banco da fila (é verdade, havia dois, um para os idosos e outro para o público em geral), batendo papo com os vizinhos e assistindo, de camarote, ao sol que se insinuava pela Rua Barata Ribeiro com sua loja de frutas que um caro amigo adorava, a lojinha nova da Cafeína e o distinto Clube Israelita Brasileiro.
Consegui meus ingressos, todos eles. Não sem uma generosa dose de burocracia, que dava uma prévia do que viria a ser o dia dos atendentes da TicketMaster. Um pouco de confusão na primeira hora, ansiedades à solta, mas reforço meu estoque de paciência, respiro fundo e espero, aliviada, a minuciosa contagem e conferência dos ingressos. Entrego a procuração que garante a meia-entrada de uma amiga e assisto, sem acreditar, à "carimbagem" e preenchimento dessas entradas, uma a uma, pelo atendente. Lá fora, a fila começava a enlouquecer com os 40 minutos que levou o atendimento das primeiras três, quatro pessoas. Quanto tempo levariam as centenas de outras que aguardavam?
Há que se reconhecer: a Flip tenta, a cada ano, melhorar a venda dos ingressos. E até tem conseguido progressos, mas como agradar a todos? O evento é um só, mas a paixão das pessoas é maior que ele e cresce a cada ano, então...
Desta vez, consegui. Outras pessoas também conseguiram. Na saída, despeço-me dos novos amigos que, alegres, já marcam encontros na entrada da bela tenda, encantados com a programação intensa e promissora.
E desço a Rua Santa Clara com um doce cheirinho de tinta sobre papel a preencher-me a alma.

Quem é vivo sempre aparece

Apesar do lapso - quase 10 meses! - a parte viva de mim está feliz em reencontrar, reassumir esse espaço com boas palavras e idéias. Não é que elas - as palavras e as idéias - tenham arrefecido nesse tempo; não, muito ao contrário. O que pesou foi, como disse Ruy Guerra no histórico Calabar, é que há distância entre intenção e gesto. Uma vez encurtado esse caminho, cá estou eu de volta ao ciberespaço com gestos prontos a materializar a intenção de sempre: informar, discutir, criar, traduzir sonhos, manter viva e acesa a chama do espírito jornalístico.

Reencontros

Naquilo que tem de melhor - a democracia do espaço e a rapidez da informação - a Internet pode ser um presente de fato. Nesse particular, tenho sido agraciada ultimamente com muitas alegrias.

Nos idos de 1974, participei de um programa de intercâmbio chamado AFS (American Field Service), que me deu a chance de morar por 11 meses nos EUA e aprender muito, mas especíalmente três coisas: falar inglês, me virar sozinha e dar muito, mas muito valor à amizade.

Éramos muitos, uns 170 ou mais, do Brasil inteiro. Todos muito jovens, entre 16 e 18 anos, e muita vontade de ver qual era. Quase sem lenço e sem documento; só sabíamos, de fato, que íamos viver como uma família e, supostamente, ser tratados como filhos na casa. Ah, e também freqüentaríamos a escola por lá.

E assim foi; ganhamos irmãos, pais novos, muitas vezes avós - e professores, colegas, namorados. Discos e livros e muito mais. Passamos sufôco, solidão, saudade, sentimentos de inadequação, grandes alegrias, muito aprendizado.

Hoje, 31 anos depois, a Turma do AFS do ano letivo 74-75 (é, lá o "ano" é diferente) está de volta, todos de novo entre 16 e 18 anos na alma, num grupo do Yahoo que está virando a cabeça, dando palpitação, frio na barriga, vontade de rir e chorar, ansiedade louca para ver qual o próximo nome que foi "achado" na rede.

Alguns já conseguiram se encontrar: a turma de Porto Alegre, a de Belo Horizonte, a de São Paulo... outros ainda suspiram pelo "ao vivo", mas se escrevem e telefonam, na esperança de diminuir a distância imposta, física...

Mas no coração estão juntinhos, com as mesmas roupas, cabelos e sonhos. Igualzinho antigamente, parece que foi ontem, é tudo muito verdadeiro, sincero, inocente mesmo.

No que tem de melhor, a Internet está sendo salvadora e essencial na vida de toda essa gente - da qual faço parte desde que tomei aquele avião fretado das Aerolíneas Argentinas, com aeromoças rabugentas, que parecíam velhíssimas por trás de tanta maquiagem e sorrisos de plástico.

Hoje, quando abro meus emails, não consigo deixar de pensar em como a tecnologia pode, às vezes, guardar algo de divino sob sua capa aparentemente mecânica.

Mas as surpresas da web têm sido ainda maiores. Um belo dia, um lindo dia, estava eu a abrir o Outlook quando vejo, assim do nada, um email que dizia: Azul! Azul! Azul! Achei você!

Na assinatura, Vera Matagueira.

Juro que, se não estivesse sentada, desmaiaria de verdade. E voltei 20 anos no tempo - dessa vez um outro tempo, a época da faculdade de Comunicação em Botafogo, no Rio.

Estudávamos na célebre Facha (Faculdade Hélio Alonso). Nossa turma começou em agosto de 78 e, desde o primeiro período, um grupinho acabou se juntando. Vera Lúcia Lima Matagueira era uma jovem extremamente crítica e animada, de profundos óculos, sempre pronta a contestar e a participar de vários modos. Filha de portugueses, morava no bairro, assim como eu: vivia numa ruazinha que desemboca na Rua da Passagem, e eu, numa vila bem no começo da São Clemente.

Estávamos sempre juntas num grupo que incluia também Ana Lígia, Virgínia, Nilcéia, Astênio, Marquinho e outros. Todo mundo trabalhava de dia em outras coisas. A Vera era uma das únicas que já estava em agência de publicidade; eu, Ana e Virgínia éramos secretárias; Nilcéia trabalhava na saúde e os meninos, em escritório. Quase ninguém estava ainda perto do sonho de tornar-se jornalista, mas era como se fosse; íamos a tudo quanto era debate, assinávamos todo tipo de manifesto, arriscávamo-nos nas cordas bambas da reta final da ditadura militar, desabridos como todo jovem idealista diante de um perigo tentador.

Uma dia Vera, quem diria, apaixonou-se... e resolveu emigrar pra Portugal. Lá foi ela com sua energia, alegria, inteligência e sonhos, muitos sonhos de artista e de mulher. Ficamos todos na torcida, pensando em quando poderíamos cruzar o tanto mar pra visitá-la. Um tempo depois, tristeza e apreensão: alguns castelos por lá desmoronaram, e a amiga deprimia-se. Preocupados, tentávamos consolá-la, mas por telefone ou carta fica sempre mais difícil. Chegamos a pensar em trazê-la de volta fazendo uma vaquinha, mas, com nossos parcos recursos, não conseguimos. A preocupação, o carinho e as cartas continuaram por um bom tempo. Depois, um certo silêncio acabou se instalando.

Lá um dia... AZUL! Chegou a primeira carta boa, claros ventos de Lisboa, uma luz no fim do túnel. Vera rompeu de vez com a tristeza, arranjou um bom emprego, aprumou-se na vida e na alma - e venceu na terrinha! Alegria geral. Por um bom tempo nos escrevemos, telefonamos... mas a rotina e a loucura são inexoráveis, acabam separando as pessoas.

Até que... bem, o resto vocês sabem. O coração está mais azul porque Vera me achou na rede. Com a facilidade e a rapidez do email, estamos juntas quase todo dia. Mesmo com tanto mar pela frente.