O cartaz original do filme
Pois quem haveria de imaginar o que uma simples noite de
sábado, passado o Natal e virado o Ano Novo, poderia trazer de surpreendente,
de inesperado, para bafejar de alegria a madrugada que mal começava a se anunciar?
Tenho o hábito de visitar as novelinhas globais que chegam
com o fim da tarde. Além do tempo, a
das seis, me encanta. Além da luxuosa Irene Ravache encabeçando o elenco, é
espiritualista e recheada de histórias que atravessam vidas. Já Totalmente demais, a das sete, traveste
o conto de Pigmalião imortalizado por Bernard Shaw com os artifícios do mundo fashion – o que, além de repetitivo, pode
ser cansativo também. Bocejos. A regra do
jogo, a das nove, encapsulada entre dois telejornais, leva o mau-caratismo
às últimas e quase insuportáveis consequências. Renego, me coço na cadeira,
arremesso meus silêncios na direção do controle remoto.
Quando a marca do humorístico Zorra Total aparece para assombrar a telinha, agarro-me à deixa e
deslizo entre os canais abertos, talvez em busca de algum episódio de “Um pé de quê” esquecido na programação.
Afinal, aprender sobre árvores centenárias é bem mais edificante e afim com a
minha alma. Para meu espanto, porém, deparo-me com um programa chamado Cine Conhecimento, no Canal Futura, e
pego carona no bonde que já anda: uma conversa interessantíssima da apresentadora
Lorena Calábria com o crítico Pablo Villaça. Bendigo a feliz coincidência que
me diz que a hora é de plantar filmes, não árvores. Em seguida – suprema felicidade!
– a apresentadora anuncia a exibição de Cantando
na Chuva.
Isso mesmo. Paro de respirar imediatamente. Há chuva, sim,
na minha janela, mas a alma festeja e grita. Mal acredito. O meu sábado, na
verdade, começa agora.
Da tela, telinha ou telão, jorram toda aquela alegria
juvenil, o encantamento, o arrebatamento e o êxtase que Cantando na Chuva inevitavelmente desperta. E não é saudade ou
nostalgia o que me move agora: é a doce, tola e gostosa sensação de primeira
vez, de descobrir de novo cada momento, cada gesto e a exuberância sempre
inovadora da dança e da música nos pés e nas vozes dos queridos mestres Gene
Kelly, Donald O’Connor e Debbie Reynolds. Kelly, um gentleman, soberbo; O’Connor,
a versatilidade em pessoa; Reynolds, quase uma menina, gloriosa em sua ternura.
Donald O'Connor, Debbie Reynolds e Gene Kelly
Muita gente já falou e escreveu sobre cada uma das múltiplas
facetas de Cantando na Chuva. Muitos
especialistas já discutiram a genialidade, a técnica, o estilo, a dança, a
coreografia. Tantos outros já contaram todas as fofocas e curiosidades do
filme, sob todos os ângulos possíveis. Eu, aqui da minha poltrona, apenas
sinto. Sou levada por essa inundação de beleza, de poética, de mestria na
dança, de emoção na garganta. E vou me impregnando, mais uma vez, de tudo que é
novo, atual e fresco nessa história que funde todas as épocas em uma.
Este hino de amor ao cinema, esta fábula centrada na
transição da cena muda para o reinado do som, penetra fundo na alma de quem,
como eu, jamais sairá da sala escura. Tenho, sim, um clone nesse universo de
magia, ao qual sempre recorro para que essa arte, a sétima senão a primeira,
continuamente me salve.
Já na abertura, o contraste entre o visual de glamour e os
percalços que todo artista passa para seguir o seu coração e materializar seus
sonhos, retratado no percurso em flashback
do personagem principal, Don Lockwood, dá a exata medida desse duplo etérico de que é feito o artista.
Mesmo no topo do mundo, sabe que está ali a serviço de algo maior que ele
próprio: provocar no outro um sentimento, uma emoção, uma conexão qualquer com
um mundo diferente, intangível, e que só ele, naquele momento preciso, pode
tornar acessível a quem o vê e percebe.
Donald O'Connor e Gene Kelly no flashback
Tudo em Cantando na
Chuva é parte de uma viagem fascinante que nenhum outro musical proporciona
a nós, passageiros de sua magia. Falo de todas as referências ao mundo de glamour
e fantasia, às célebres Follies do
teatro de revista, ao vaudeville e à
estética do cinema mudo - mas sobretudo à dança, que se revelou de múltiplas
formas e atingiu sua máxima expressão nas produções da era de ouro do cinema.
Não há como negar o fascínio exercido por Fred Astaire, Ginger Rogers, pela
exuberante Cyd Charisse – por sinal, presença mais que marcante no filme -,
pela dupla dinâmica Frank Sinatra e Dean Martin, pela rainha do nado
sincronizado Esther Williams e tantos outros bailarinos fenomenais. No auge de
sua forma e versatilidade, Gene Kelly coloca todo seu talento a serviço da
maior homenagem de todos os tempos a todos os artistas que fizeram do tap dance e do jazz, em suas variadas
formas, as grandes estrelas de uma cinematografia que marcou, definitivamente,
a vida de várias gerações mundo afora.
Por obra e graça do mais que genial coreógrafo Stanley
Donen, que co-dirige o filme ao lado de Kelly, Cantando na Chuva mudou tudo no cinema. Delicadeza, ousadia,
charme, finesse, criatividade...
nenhum elogio seria suficiente para definir o conjunto de transformações que se
conseguiu operar, na cena da dança, em um só filme. Os grandes conjuntos das Follies Girls, com figurinos primorosos,
são presentes que a gente ganha a cada segundo.
Os trios, os solos, o grande momento de O’Connor com a boneca no sofá, as
cenas dançadas no flashback, a
apoteose da Broadway – enfim, uma sucessão de alegrias orquestradas com
precisão, que colorem a história com poesia e ternura. A gente flui com o
filme. Cada um conquista, à sua maneira, o próprio sapato com chapinha, o salto
alto inimaginável de Cyd Charisse, mergulha no pas-de-deux praticamente clássico do sonho de Lockwood, envolto na
mais poética (e quilométrica) écharpe ao vento da história, canta no coro de Gotta Dance!... Não é possível passar
imune por Cantando na Chuva, nem
mesmo pela enésima vez.
Do meu latifúndio no sofá à poltrona do Cine Riviera, que me
apresentou ao filme ainda na infância, fico só imaginando o assombro estampado
nos rostos das primeiras plateias americanas, na época da estreia do filme.
Coloco uma câmera imaginária na frente desses rostos e vejo o espanto se
transformar, nos olhos de cada espectador, em riso, em lágrima, em angústia, em
euforia – para voltar a ser espanto, assombro, incredulidade e, no final,
rendição incondicional ao talento que materializou algo tão único e irrepetível
como Cantando na Chuva.
Na cena clássica em que Gene Kelly literalmente canta na
chuva, sozinho, foi preciso – segundo uma das lendas que cercam o filme –
misturar leite à água para dar mais brilho à chuva produzida no estúdio.
Questões íntimas e insondáveis das lentes e da luz. Para nós, porém – sobretudo
para mim, que neste momento não consigo e nem tento controlar minha emoção –
nada disso importa. Vejo apenas o que a alma canta, o que a dança no corpo
evoca, o que a chuva lava e purifica – e o que este grande artista nos oferece,
para sempre gravado no celulóide, na cópia digital, no DVD, no blue-ray e no coração.
Muito boa noite, chuva na minha janela. Muito boa noite,
inesquecível sábado, dois de janeiro de 2016. Muito boa noite, inesquecível Cantando na Chuva.
Gene Kelly