Há um piano à venda. É um belo Fritz Dobbert de cauda, novo em folha, a laca preta reluzindo, mecanismo e cordas brilhando. A flanela parece que acabou de ser comprada. As teclas em ébano e marfim parecem virgens, as cores firmes, a suavidade que transparece por entre os dedos de quem o toca e o entende.
Esse instrumento que transcende poesia, que reflete no espelho que é o tampo o esforço enorme despendido para comprá-lo, pertence a uma escola de música. Ou melhor, a um conservatório de música, como convém à melhor tradição brasileira. Um conservatório que formou e ainda forma instrumentistas nas mais diversas áreas. Onde se ensina e aprende teoria e prática musical. Um lugar onde se toca e canta por música.
E está à venda, descobrimos por entre os olhos tristes das professoras.
A vida moderna é difícil, a situação do país também. Foi-se o tempo em que o ensino da música era uma prioridade para certas famílias em melhores condições. Quando eu era menina, muitas colegas de escola freqüentavam as cobiçadas aulas de teoria e piano, sonho de poucos (eu, nem pensar, quem dera!). Mas esses poucos ainda eram suficientes para manter em boa posição os conservatórios, onde pacientes mestres dedicavam-se aos alunos, às audições, aos exames no Rio de Janeiro. Uma amiga da mesma geração me contava, há alguns anos, que em sua cidade usavam uniformes com dragonas indicativas do ano de estudo nos ombros, e que os exames anuais eram uma verdadeira agonia, com direito a suor nas mãos e dor-de-barriga...
Os conservatórios funcionavam com o rigor característico do modelo educacional da época. Só que o mundo foi virando e desvirando, a vida tornou-se muito mais veloz, as meninas deixaram de cultivar virtudes e talentos próprios às donas-de-casa para buscar espaço em ambientes antes privativos dos homens, e nesse roldão a música foi sofrendo abalos sucessivos. Depois vieram os anos 70, tempo de transgredir e transformar... A guitarra de Jimmi Hendrix horrorizava os mais ortodoxos e hipnotizada os mais jovens com sede de liberdade para desconstruir e criar. A vida intelectual brasileira era dizimada pela ditadura militar, assim como a economia e o sistema educacional. Seguiram-se tempos mais duros para o emprego e o ambiente social, num processo sem volta. E as transformações levaram consigo muitas tradições importantes na nossa cultura, entre as quais vários conservatórios de música, sobretudo no interior.
Fora-se o tempo em que um entusiasmado Heitor Villa-Lobos recebia carta branca do Presidente da República para transformar o país pelo canto coral e reunia 20 mil vozes, pasmem, 20 mil vozes no Maracanãzinho para celebrar o trabalho que implantara em praticamente todas as escolas públicas do Rio de Janeiro. O maestro acreditava nisso, provou que podia, mas estamos aí até hoje a nos debater em cima das mesmas questões. Nem quando os Titãs escrevem que "a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte", as pessoas entendem. Aquelas aulas de música eram vitais para inspirar, instigar e tirar as crianças da pasmaceira, da mesmice e fazê-las descobrir o mundo através da única linguagem que, até hoje, se provou universal. Esperanto? Uma bonita ilusão. Religiões? Olha o resultado nos jornais todo dia. Só na música as pessoas se encontram de verdade. Só a música é capaz de unir, numa mesma orquestra, africanos, neozelandeses, israelenses, palestinos, vietnamitas. E mesmo que aquelas mesmas crianças não dessem pra músicos, o ensinamento plantava-se dentro delas para que soubessem apreciar, e ensinar aos seus filhos, que um dia existiu um Mozart, um Bizet, um Villa-Lobos, um Carlos Gomes. A música será talvez a única tradição que se mantém praticamente intacta através dos tempos, pois possui som para se guardar na memória. Um livro pode-se queimar, mas a música pode-se lembrar, reproduzir, escrever de novo.
Ficamos piores sem a música. Aliás, ainda que às vezes a gente não se aperceba disso, ninguém vive sem ela, seja qual for o gênero da preferência.
O conservatório do interior possui um piano, e uma bela história de realizações pequenas e grandes. Possui a dedicação de vidas inteiras ali depositadas, empenhadas na plantação diária da sementinha da música, essa mesma que abre as portas do mundo. E possui também dívidas, essas coisas comezinhas que nos atacam no dia-a-dia, é um aluguel, é um imposto, é menos um, dois, mais alunos, é o pagamento de professores, luz, gás, telefone... Dívidas que um piano transformado em dinheiro pode pagar, sim, mas o que paga o piano e sua história? Os jantares beneficentes cuidadosamente arranjados para pagar suas prestações? As vaquinhas de última hora, quando o dinheiro faltou? As personalidades que passaram por suas teclas reluzentes e delas tiraram sons à beira do divino? Os corações que se alegraram com sua música a espalhar-se no ar? Os alunos de primeira viagem, que sentaram-se ao banquinho com as mãos frias e o coração aos saltos, mortos de medo e de emoção, na primeira audição?
Vende-se um piano com uma história. Uma história com suas recordações. Vendem-se lembranças que têm som, têm eco na alma. Triste é o tempo em que se faz necessário transformar em mercadorias as peças sem as quais os sonhos não podem existir.
quarta-feira, dezembro 27, 2006
domingo, dezembro 24, 2006
À cata de um sentido em meio ao alvoroço
Gosto de Natal. Adoro as comidas. E gosto também de dar e ganhar presentes. E dos rituais, arrumar árvore, presépio, mensagens... sobretudo lembranças boas e confortáveis da infância, como o refresco de vinho com água e açúcar a que sempre tínhamos direito em quantidades ilimitadas, as rabanadas em calda (raras hoje em dia), toda aquela azáfama familiar na cozinha, um cheiro bom de azeite português a circular pela casa...
Nesses dias de dezembro, em paralelo à contabilidade espiritual do ano, às pequenas e grandes frustrações e alegrias, tenho sentido pânico nas ruas. Nunca o burburinho da multidão acotovelada entre pacotes e ataques de nervos, a disputar espaço nas calçadas, nas lojas, nos locais públicos, me incomodou tanto. A um grande desconforto no estômago somam-se uma grande sensação de inutilidade e impotência, uma tristeza impregnada de vazio. As passoas parecem desesperadas por comprar, comprar, comprar, numa falsa e desenfreada euforia... Parecem estar todas no piloto automático, correndo atrás de coisas, coisas das quais não podem prescindir de jeito nenhum, e tudo tem que ser feito rapidamente, como se estivessem a contar os segundos que as separam da noite de Natal.
Noite de Natal... Natal quer dizer nascimento. A noite de Natal existe para pensarmos no nascimento do Menino Jesus, de forma pobre e precária, quase sob as estrelas... Existe para reencontrarmos tudo aquilo que é simples e puro por dentro... Existe para lembrar, justamente, que bens materiais nada significam. O importante é a estrela. É a luz que transforma as pessoas e as faz melhores.
Sim, o Natal é festa católica. É chamado "a data máxima da Cristandade." Mas nem por isso deveria ser circunscrito aos crentes. Mesmo um ateu pode enxergar beleza no simbolismo da manjedoura. Naquele momento de paz e ternura em que um pequeno grupo de pessoas se ocmove diante da majestade genuína de um recém-nascido, alguém que acaba de abrir os olhos e o peito para o mundo, seja santo ou não.
A tradição da troca de presentes vem dos Reis Magos, aqueles que viajaram céus e terras para entregar ao Menino Deus os seus dons. Sim, dons! Magos por certo, trouxeram ouro, incenso e mirra por seu valor verdadeiro, não pelo comercial. A pureza do ouro, a depuração pelo incenso e mirra. Assuntos espirituais, dons para proteger o menino. Não bens a serem consumidos.
Pois hoje, nas ruas, a olhar a multidão aflita dessas últimas horas, procuro em vão o sentido das coisas. O que se vê são apenas os sentidos. Todos querem tocar, cheirar, apalpar as coisas que não são do espírito, mas são do Natal. Natal igual a comida, igual a presentes, igual a ser, por um dia, algo que não se é. Natal onde o presépio fica esquecido, é apenas mais um item na decoração - de preferência, motorizado e todo iluminado artificialmente.
Ando pelas ruas com vontade de gritar... Desisto, recolho-me. Ando à cata de algo que faça sentido no meu sistema solar, um espelho no qual possa penetrar e olhar o Natal como São Francisco olhou sua cidade ao sair, nu, em busca do sentido da sua vida de santo, o santo que mais amou os pobres e os animais, e que escolheu a vida natural para expressar o seu amor por Deus e pela humanidade.
Amo o silêncio da noite estrelada em que Deus deu ao mundo o seu filho, o presente máximo e mais valioso, para que nos trouxesse a luz com que iluminar a caminhada. Amo o sentido do presépio, a gente comum que torna viva a santidade, pois santifica a vida em si a cada momento, só por existir, por sorrir acima de tudo, e por viver o Natal a cada dia na comunhão, na partilha e na fraternidade. Que enxerga o próximo como a si mesmo, o principal e mais difícil ensinamento daquele menino que um dia...
Ah, deixa pra lá. O importante é que o Natal existe, está no coração e não nas prateleiras das lojas onde, até próximo da meia-noite, muita gente se debaterá por um objeto qualquer que se pareça com a felicidade.
Que, como diz aquela velha e querida canção natalina, é brinquedo que não tem... Sim, porque não é brinquedo, é dom. E só pode mesmo estar dentro da gente...
Que o Natal dentro de ti possa ser muito, muito feliz.
Nesses dias de dezembro, em paralelo à contabilidade espiritual do ano, às pequenas e grandes frustrações e alegrias, tenho sentido pânico nas ruas. Nunca o burburinho da multidão acotovelada entre pacotes e ataques de nervos, a disputar espaço nas calçadas, nas lojas, nos locais públicos, me incomodou tanto. A um grande desconforto no estômago somam-se uma grande sensação de inutilidade e impotência, uma tristeza impregnada de vazio. As passoas parecem desesperadas por comprar, comprar, comprar, numa falsa e desenfreada euforia... Parecem estar todas no piloto automático, correndo atrás de coisas, coisas das quais não podem prescindir de jeito nenhum, e tudo tem que ser feito rapidamente, como se estivessem a contar os segundos que as separam da noite de Natal.
Noite de Natal... Natal quer dizer nascimento. A noite de Natal existe para pensarmos no nascimento do Menino Jesus, de forma pobre e precária, quase sob as estrelas... Existe para reencontrarmos tudo aquilo que é simples e puro por dentro... Existe para lembrar, justamente, que bens materiais nada significam. O importante é a estrela. É a luz que transforma as pessoas e as faz melhores.
Sim, o Natal é festa católica. É chamado "a data máxima da Cristandade." Mas nem por isso deveria ser circunscrito aos crentes. Mesmo um ateu pode enxergar beleza no simbolismo da manjedoura. Naquele momento de paz e ternura em que um pequeno grupo de pessoas se ocmove diante da majestade genuína de um recém-nascido, alguém que acaba de abrir os olhos e o peito para o mundo, seja santo ou não.
A tradição da troca de presentes vem dos Reis Magos, aqueles que viajaram céus e terras para entregar ao Menino Deus os seus dons. Sim, dons! Magos por certo, trouxeram ouro, incenso e mirra por seu valor verdadeiro, não pelo comercial. A pureza do ouro, a depuração pelo incenso e mirra. Assuntos espirituais, dons para proteger o menino. Não bens a serem consumidos.
Pois hoje, nas ruas, a olhar a multidão aflita dessas últimas horas, procuro em vão o sentido das coisas. O que se vê são apenas os sentidos. Todos querem tocar, cheirar, apalpar as coisas que não são do espírito, mas são do Natal. Natal igual a comida, igual a presentes, igual a ser, por um dia, algo que não se é. Natal onde o presépio fica esquecido, é apenas mais um item na decoração - de preferência, motorizado e todo iluminado artificialmente.
Ando pelas ruas com vontade de gritar... Desisto, recolho-me. Ando à cata de algo que faça sentido no meu sistema solar, um espelho no qual possa penetrar e olhar o Natal como São Francisco olhou sua cidade ao sair, nu, em busca do sentido da sua vida de santo, o santo que mais amou os pobres e os animais, e que escolheu a vida natural para expressar o seu amor por Deus e pela humanidade.
Amo o silêncio da noite estrelada em que Deus deu ao mundo o seu filho, o presente máximo e mais valioso, para que nos trouxesse a luz com que iluminar a caminhada. Amo o sentido do presépio, a gente comum que torna viva a santidade, pois santifica a vida em si a cada momento, só por existir, por sorrir acima de tudo, e por viver o Natal a cada dia na comunhão, na partilha e na fraternidade. Que enxerga o próximo como a si mesmo, o principal e mais difícil ensinamento daquele menino que um dia...
Ah, deixa pra lá. O importante é que o Natal existe, está no coração e não nas prateleiras das lojas onde, até próximo da meia-noite, muita gente se debaterá por um objeto qualquer que se pareça com a felicidade.
Que, como diz aquela velha e querida canção natalina, é brinquedo que não tem... Sim, porque não é brinquedo, é dom. E só pode mesmo estar dentro da gente...
Que o Natal dentro de ti possa ser muito, muito feliz.
sábado, dezembro 09, 2006
Dores de amores, essas passarão
Não importa a idade: no amor somos todos adolescentes. Os hormônios percorrem o corpo com aquela velocidade estupenda que nos faz viajar a jato do céu ao inferno em segundos, que nos dá falta de ar, taquicardia, que nos faz rir e chorar de qualquer coisa, por qualquer coisa, ao sabor do tanto que vai no peito, tanto que quase arrebenta a todo momento.
Adolescentes de fato e de direito na alma, confiamos. Entregamos. Aceitamos. Adoramos. Rimos sozinhos o tempo todo, lembrando dos tudos e nadas, sonhando com a hora de desafogar o amor, reparti-lo com o corpo, os olhos e a alma do amado, deixá-lo correr livre pelas praias da alegria de estar junto, mal seguramos os nossos sentidos, não pensamos em outra coisa que não o objeto do amor, ainda que às vezes nem consigamos nos recordar direito dos traços do seu rosto... O amor, na pele do amado, não tem defeito, tudo o que ele ou ela diz é lindo, interessamo-nos por tudo o que faz, gostamos de quase tudo o que gosta - e, se não gostamos de tudo, "perdoamos" na hora o que não nos agrada tanto assim. É tão bom viver da graça do amor!... Essa graça infinita que nos toca, nos dilui e engrandece... E que nos faz enxergar o mundo das alturas, com as cores alteradas para melhor, e nos torna bem mais pacientes para com tudo o que não seja o tempo-espaço que nos separa do ser amado.
É uma adolescência rica, viva, que funciona do mesmíssimo jeito em qualquer corpo, de qualquer forma, em qualquer fase da vida. Na linha do tempo, o que a distingue da adolescência propriamente dita é apenas um detalhe: na maturidade sabemos que vai passar. Jovenzinhos, acreditamos que vamos morrer se algo der errado, que não aguentaremos o baque, que nada além do amor é possível.
Na maturidade as coisas florescem iguais, as esperanças nascem iguais, chegam sem aviso e te envolvem na ternura, na alegria e glória de apaixonar-se. Estás assim a navegar no vazio, muitas vezes sem sentir - e de repente te cai alguém na vida. Que conheces na rua, na livraria, no trabalho, num bar... ou quem sabe recebes um email de alguém que leu um dos teus escritos? Não importa de onde vem o canto da sereia, mas ele chega e tu, por alguma razão, o escutas... e gostas... e teu coração o segue, a princípio devagar, ensaias um ar de engano, finges que não é bem assim, mas as cordas do corpo tremem, vibram daquele mesmo jeito que já vibraram um milhão de vezes, e agora nada mais parece fazer sentido sem essa expansão, sem esses balões de gás a ocupar todo o espaço do estômago, amassados pela dúvida, apertados pelas vias respiratórias... pronto, o amor tomou-te.
É infalível: tentas parecer adulto. Ou acreditar que és sério, que essas coisas não te afetam, que desta vez vai ser diferente... Mas há algo em ti que não te obedece, que teima em entregar-se ao sonho, à contemplação do amor, ao êxtase do amor, à fome que ele provoca e que, num minuto qualquer, torna-se insaciável, compulsiva, profunda, imemorial... E parece impossível viver longe do amado, qualquer cama fica enorme sem aquele ser ao teu lado, as noites ficam difíceis de varar, sentes saudade até quando estão juntos, o acordar só é bem-vindo se tiveres aqueles olhos a se abrirem sorridentes, gratos pelo encontro banhado pela luz do dia que começa... é isso, o amor povoou-te.
Enamorados, acreditamos em tudo. Só vemos o que queremos ver, só ouvimos o que o coração insiste em dizer (ou inventar)... Deletamos tudo o que não combina com aquele doce e fundo estado de sentir, aquela disposição infinita para ser feliz e fazer feliz, aquele gozo fácil de pequenos detalhes, cumplicidades, coisinhas dos dois... Esquecemos de pronto qualquer olhar mais avesso, um gesto contrário, um passo para trás... Uma certa dor nos espreita, mas a negamos e voltamos a mergulhar no ser-feliz-de-fadas que o amor plantou dentro da gente...
Mas a maturidade tem suas agulhas, ah tem. E às vezes elas nos espetam - de leve, mais ou menos, ou com toda força. E, muito a contragosto, começamos a perceber os sinais do amor que se vai, ou que ainda não foi mas quer ir, ou que disfarçou-se e agora mostra a cruel face do adeus. Mas não, não é possível, não queremos ver, vivemos ali a nossa verdade pura e abundante, ofertamos o melhor e o mais precioso, isso deve bastar, não?...
Nem sempre basta. Você não percebeu, porque não podia ou não queria ou não aguentava, mas o outro já não respira no mesmo ritmo. Já não te telefona tantas vezes, já não te sussurra ao ouvido, não dorme bem ao teu lado, tem tanto mais o que fazer... Esquece muitos combinados, não responde tuas perguntas, não quer tuas mãos dadas, os carinhos escorregam vãos pela pele ausente...
E um dia tu descobres que o teu amor, aquele lá que nutriste dentro do teu coração, está só. Que já não há comida. Que os sonhos se desentenderam. O objeto-amado-ausente já partiu de ti. Enquanto tu anseias, ele vaga. Se sonhas, ele viaja. Foge-te aquele espaço onde ambos cabiam tão confortavelmente. E, por mais que o tentes, não o encontras mais...
Te custa crer, eu sei. Uma dor fina vai penetrando os ossos da alma até quase rebentarem, e lá dentro cresce, cresce, cresce... Não te conformas, não acreditas, mas é em vão. Foi-se o amor, e o que vês é um estranho agora. Bate um constrangimento, entra um véu no caminho, e o coração comprime-se tanto no peito que parece que nunca mais conseguirás respirar de novo, que viver é muito mais perigoso do que parece, quando se enxerga o mundo com cara de todo-dia.
Para o sofrer de amor, não existe todo-dia; existe o dia-após-dia depois do amor acabado, sempre tão penoso, difícil de palmilhar, cada degrauzinho mais alto que o Everest... Um dia chora, outro finge que ri, depois de amanhã é uma febre de 40 graus, e segunda-feira - certo, Drummond, é isso mesmo, ninguém sabe o que será.
Com quinze anos no corpo, a certeza é só uma: morrer é uma questão de horas.
Já com quinze anos na alma e alguns, muitos mais no corpo, certezas já não são favas contadas. Sabe-se apenas que aquilo já aconteceu uma, duas, infinitas vezes... e que, um dia, após muitas esquinas, a gente vê que a dor ficou para trás. A gente sente que consegue respirar, ler, conversar, trabalhar, ir ao cinema. Dançar sem peso no coração. Perdoar praticamente qualquer vacilo, seu ou do amado de então. E evoluir na graça de saber-se vivo, pronto, nem mais nem menos. Normal.
Até que isso aconteça, porém, há que carregar a dor no silêncio da alma, ou aos gritos no escuro, desesperar-se na esperança do momento em que tudo vai passar - e abraçá-lo com o coração quando ele, enfim, chegar.
Adolescentes de fato e de direito na alma, confiamos. Entregamos. Aceitamos. Adoramos. Rimos sozinhos o tempo todo, lembrando dos tudos e nadas, sonhando com a hora de desafogar o amor, reparti-lo com o corpo, os olhos e a alma do amado, deixá-lo correr livre pelas praias da alegria de estar junto, mal seguramos os nossos sentidos, não pensamos em outra coisa que não o objeto do amor, ainda que às vezes nem consigamos nos recordar direito dos traços do seu rosto... O amor, na pele do amado, não tem defeito, tudo o que ele ou ela diz é lindo, interessamo-nos por tudo o que faz, gostamos de quase tudo o que gosta - e, se não gostamos de tudo, "perdoamos" na hora o que não nos agrada tanto assim. É tão bom viver da graça do amor!... Essa graça infinita que nos toca, nos dilui e engrandece... E que nos faz enxergar o mundo das alturas, com as cores alteradas para melhor, e nos torna bem mais pacientes para com tudo o que não seja o tempo-espaço que nos separa do ser amado.
É uma adolescência rica, viva, que funciona do mesmíssimo jeito em qualquer corpo, de qualquer forma, em qualquer fase da vida. Na linha do tempo, o que a distingue da adolescência propriamente dita é apenas um detalhe: na maturidade sabemos que vai passar. Jovenzinhos, acreditamos que vamos morrer se algo der errado, que não aguentaremos o baque, que nada além do amor é possível.
Na maturidade as coisas florescem iguais, as esperanças nascem iguais, chegam sem aviso e te envolvem na ternura, na alegria e glória de apaixonar-se. Estás assim a navegar no vazio, muitas vezes sem sentir - e de repente te cai alguém na vida. Que conheces na rua, na livraria, no trabalho, num bar... ou quem sabe recebes um email de alguém que leu um dos teus escritos? Não importa de onde vem o canto da sereia, mas ele chega e tu, por alguma razão, o escutas... e gostas... e teu coração o segue, a princípio devagar, ensaias um ar de engano, finges que não é bem assim, mas as cordas do corpo tremem, vibram daquele mesmo jeito que já vibraram um milhão de vezes, e agora nada mais parece fazer sentido sem essa expansão, sem esses balões de gás a ocupar todo o espaço do estômago, amassados pela dúvida, apertados pelas vias respiratórias... pronto, o amor tomou-te.
É infalível: tentas parecer adulto. Ou acreditar que és sério, que essas coisas não te afetam, que desta vez vai ser diferente... Mas há algo em ti que não te obedece, que teima em entregar-se ao sonho, à contemplação do amor, ao êxtase do amor, à fome que ele provoca e que, num minuto qualquer, torna-se insaciável, compulsiva, profunda, imemorial... E parece impossível viver longe do amado, qualquer cama fica enorme sem aquele ser ao teu lado, as noites ficam difíceis de varar, sentes saudade até quando estão juntos, o acordar só é bem-vindo se tiveres aqueles olhos a se abrirem sorridentes, gratos pelo encontro banhado pela luz do dia que começa... é isso, o amor povoou-te.
Enamorados, acreditamos em tudo. Só vemos o que queremos ver, só ouvimos o que o coração insiste em dizer (ou inventar)... Deletamos tudo o que não combina com aquele doce e fundo estado de sentir, aquela disposição infinita para ser feliz e fazer feliz, aquele gozo fácil de pequenos detalhes, cumplicidades, coisinhas dos dois... Esquecemos de pronto qualquer olhar mais avesso, um gesto contrário, um passo para trás... Uma certa dor nos espreita, mas a negamos e voltamos a mergulhar no ser-feliz-de-fadas que o amor plantou dentro da gente...
Mas a maturidade tem suas agulhas, ah tem. E às vezes elas nos espetam - de leve, mais ou menos, ou com toda força. E, muito a contragosto, começamos a perceber os sinais do amor que se vai, ou que ainda não foi mas quer ir, ou que disfarçou-se e agora mostra a cruel face do adeus. Mas não, não é possível, não queremos ver, vivemos ali a nossa verdade pura e abundante, ofertamos o melhor e o mais precioso, isso deve bastar, não?...
Nem sempre basta. Você não percebeu, porque não podia ou não queria ou não aguentava, mas o outro já não respira no mesmo ritmo. Já não te telefona tantas vezes, já não te sussurra ao ouvido, não dorme bem ao teu lado, tem tanto mais o que fazer... Esquece muitos combinados, não responde tuas perguntas, não quer tuas mãos dadas, os carinhos escorregam vãos pela pele ausente...
E um dia tu descobres que o teu amor, aquele lá que nutriste dentro do teu coração, está só. Que já não há comida. Que os sonhos se desentenderam. O objeto-amado-ausente já partiu de ti. Enquanto tu anseias, ele vaga. Se sonhas, ele viaja. Foge-te aquele espaço onde ambos cabiam tão confortavelmente. E, por mais que o tentes, não o encontras mais...
Te custa crer, eu sei. Uma dor fina vai penetrando os ossos da alma até quase rebentarem, e lá dentro cresce, cresce, cresce... Não te conformas, não acreditas, mas é em vão. Foi-se o amor, e o que vês é um estranho agora. Bate um constrangimento, entra um véu no caminho, e o coração comprime-se tanto no peito que parece que nunca mais conseguirás respirar de novo, que viver é muito mais perigoso do que parece, quando se enxerga o mundo com cara de todo-dia.
Para o sofrer de amor, não existe todo-dia; existe o dia-após-dia depois do amor acabado, sempre tão penoso, difícil de palmilhar, cada degrauzinho mais alto que o Everest... Um dia chora, outro finge que ri, depois de amanhã é uma febre de 40 graus, e segunda-feira - certo, Drummond, é isso mesmo, ninguém sabe o que será.
Com quinze anos no corpo, a certeza é só uma: morrer é uma questão de horas.
Já com quinze anos na alma e alguns, muitos mais no corpo, certezas já não são favas contadas. Sabe-se apenas que aquilo já aconteceu uma, duas, infinitas vezes... e que, um dia, após muitas esquinas, a gente vê que a dor ficou para trás. A gente sente que consegue respirar, ler, conversar, trabalhar, ir ao cinema. Dançar sem peso no coração. Perdoar praticamente qualquer vacilo, seu ou do amado de então. E evoluir na graça de saber-se vivo, pronto, nem mais nem menos. Normal.
Até que isso aconteça, porém, há que carregar a dor no silêncio da alma, ou aos gritos no escuro, desesperar-se na esperança do momento em que tudo vai passar - e abraçá-lo com o coração quando ele, enfim, chegar.
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