Vitoria Strada como Júlia Castelo, em Espelho da Vida
Foto: Divulgação TV Globo
Maurette Brandt
Não é preciso uma rima de
Drummond para falar, com ternura, de Espelho
da Vida - história que acaba de
virar sua última página na segunda-feira, 1º de abril. Mas, neste caso, procede: me ocorreu que, nessa
obra de rara felicidade da autora Elizabeth Jhin, tudo é vasto, imenso,
imensurável – e lá vai junto o nosso coração, combalido e esperançoso, pelos
caminhos espirituais e humanos que se desenrolaram de forma tão delicada diante
de nós, nos últimos meses.
Confesso minha predileção pelas
histórias transcendentes. Mas Espelho da
Vida foi além de qualquer expectativa. As imagens cinematográficas - pois
afinal havia ali um filme - e cadenciadas de modo a respeitar o ritmo de uma
narrativa invulgar, tocam em muitas de minhas melhores recordações de cinéfila.
Em nada houve pressa, e sim apuro. Tempo. O tempo que passa e nos faz sentir
sua passagem. O tempo não vivido que evoca lembranças inalcançáveis. O tempo
que passa mais belo nas cidades históricas mineiras que serviram de cenário, em
toda sua exuberância secular, para a história vívida de Júlia Castelo. Até um
muro que tive a petulância de adotar como meu, localizado em Tiradentes, com
suas pedras nuas e rejuntes avermelhados, estava sempre em cena, exibindo as
marcas do tempo que tanto amo. E, além de tudo, há a presença constante da
música como personagem, profunda, precisa em todos os tons e nuances. A trilha
incidental, então, de uma melancolia absolutamente contundente, fazia com que
jamais nos esquecêssemos do sofrimento e da névoa que envolviam Júlia Castelo e
seu trágico passado.
Júlia, "a mais linda flor colhida antes do tempo", como rezava o epitáfio na sepultura de 1932, vivia na cidade mineira de Rosa Branca e morrera com um tiro no peito, disparado - segundo a lenda - pelo noivo, Danilo Breton. Mais de 80 anos depois, uma caixa contendo um diário com páginas arrancadas e alguns objetos pessoais é o mote para que sua história se espalhe pelas vidas de várias pessoas do tempo presente. E no centro disso estudo está Cris Valencia, uma atriz que chega à cidade com o noivo para descobrir, por caminhos incompletos e mensagens cifradas, que é, possivelmente, a reencarnação da jovem assassinada.
Júlia, "a mais linda flor colhida antes do tempo", como rezava o epitáfio na sepultura de 1932, vivia na cidade mineira de Rosa Branca e morrera com um tiro no peito, disparado - segundo a lenda - pelo noivo, Danilo Breton. Mais de 80 anos depois, uma caixa contendo um diário com páginas arrancadas e alguns objetos pessoais é o mote para que sua história se espalhe pelas vidas de várias pessoas do tempo presente. E no centro disso estudo está Cris Valencia, uma atriz que chega à cidade com o noivo para descobrir, por caminhos incompletos e mensagens cifradas, que é, possivelmente, a reencarnação da jovem assassinada.
Como não nos envolvermos nos
pequenos grandes mistérios, nos olhares perdidos, incisivos ou vivazes de
personagens como André, Margot, Gentil, Vicente, Padre Luiz, a Guardiã
Albertina? Seria injusto não mencionar a lista inteira, mas, sinceramente, não
há como ficar indiferente à grandeza dessa estirpe particular de atores –
Emiliano Queiroz, Irene Ravache, Ana Lúcia Torre, Reginaldo Farias, Suzana
Faíni, Vera Fischer - que fizeram e fazem história em nossas vidas. Não há como não sorver
cada expressão no rosto soberbo de Irene Ravache, não se emocionar com sua
interpretação, ou não render-se à absoluta emoção de vê-la em cena duplamente,
como a doce e ampla Margot e na pele da exuberante e contraditória Hildegard. Nem
tampouco há como esquecer a insuperável Suzana Faini, perfeita em todos os
sentidos. Só Suzana tem o olhar certo, de aço cortante ou de ternos mares, para
marcar com precisão cada momento das personagens – no caso, a Guardiã
desencarnada, em busca de redenção, e a inflexível Albertina dos anos 1930.
Vitoria Strada vive Cris e Júlia. Bem poderia ser uma escolha de Alfred Hitchcock para um filme requintado: a beleza singular e estonteante, de completa delicadeza e presença intensa, revela uma atriz de múltiplos recursos e luz própria, mesmo quando velada por filtros quase mágicos de iluminação, ou quando atirada à realidade cotidiana. Traz em si o enigma, a flor da liberdade, o feminino e a fortaleza. Sua essência está em toda parte, assim como as rosas brancas que simbolizam a cidade e os sentimentos e dúvidas que transbordam de todos os lados, quando a trama começa a tomar forma diante de nós.
Vitoria Strada vive Cris e Júlia. Bem poderia ser uma escolha de Alfred Hitchcock para um filme requintado: a beleza singular e estonteante, de completa delicadeza e presença intensa, revela uma atriz de múltiplos recursos e luz própria, mesmo quando velada por filtros quase mágicos de iluminação, ou quando atirada à realidade cotidiana. Traz em si o enigma, a flor da liberdade, o feminino e a fortaleza. Sua essência está em toda parte, assim como as rosas brancas que simbolizam a cidade e os sentimentos e dúvidas que transbordam de todos os lados, quando a trama começa a tomar forma diante de nós.
A Ana e a Piedade de Júlia
Lemmertz comovem em sua delicadeza e profundidade. A atriz, que em certos momentos até assusta,
de tão parecida com a mãe Lilian, deu a cada personagem o seu exato peso e medida.
Angústia e doçura, decisão e firmeza,
humanidade e força se alternam para revelar duas mulheres bem distintas,
mas ambas ricas em sentimento e densidade. Inesquecíveis.
Não se pode esquecer também, por um segundo que seja, a presença obrigatória, compulsiva e terrível de Isabel, personagem levada aos piores extremos por Aline Moraes, numa atuação absolutamente visceral, a meu ver sem paralelo na já ótima trajetória da atriz.
Vale ainda destacar João Vicente de Castro, um verdadeiro susto de ator, sim senhor. Foi a grande surpresa em várias dimensões. Quem me vê assim cantando não sabe nada de mim, já dizia Suely Costa na letra de “Dentro de mim mora um anjo.” Fiquei de queixo caído com o sensível e incontrolável Alain, em contraposição à frieza calculada e obsessiva de Gustavo Bruno. Essa atuação gigante, para mim, muda tudo: o ator que nele vive é infinitamente maior do que o apresentador descolado e inteligente que me acostumei a encontrar nas noites da GNT.
Não se pode esquecer também, por um segundo que seja, a presença obrigatória, compulsiva e terrível de Isabel, personagem levada aos piores extremos por Aline Moraes, numa atuação absolutamente visceral, a meu ver sem paralelo na já ótima trajetória da atriz.
Vale ainda destacar João Vicente de Castro, um verdadeiro susto de ator, sim senhor. Foi a grande surpresa em várias dimensões. Quem me vê assim cantando não sabe nada de mim, já dizia Suely Costa na letra de “Dentro de mim mora um anjo.” Fiquei de queixo caído com o sensível e incontrolável Alain, em contraposição à frieza calculada e obsessiva de Gustavo Bruno. Essa atuação gigante, para mim, muda tudo: o ator que nele vive é infinitamente maior do que o apresentador descolado e inteligente que me acostumei a encontrar nas noites da GNT.
Houve momentos em que, diante de
uma e outra cena particularmente tocantes, eu não me cansava de pensar no
privilégio que é estar, por exemplo, diante da Gentil de Ana Lucia Torre, no
momento em que confidencia seu amor a um bêbado e desacordado Américo,
personagem de Felipe Camargo. Quanta nobreza e generosidade de atores desse
quilate em compartilhar conosco momentos assim!
No aspecto da espiritualidade, Espelho da Vida esbanjou conhecimento de
causa, informação clara e leveza, mesmo nos momentos mais críticos. O recurso de dar aos personagens da vida
presente e da passada o mesmo rosto é indispensável na TV, não só para a
compreensão das múltiplas camadas da história, mas também para criar empatia no
espectador. Toda a trama, mesmo
percorrendo o terreno acidentado das paixões humanas, é conduzida com suavidade,
elevação – valorizando todos os matizes de cada personagem, sem estereótipos, e
com a honestidade básica de mostrar o lado bom, o mau, o péssimo, o horrível, o
contraditório... já que todos, afinal, são seres humanos, encarnados ou não, em
busca de sua jornada pessoal.
Mesmo com o notável último
capítulo, Espelho da Vida não acaba
fácil dentro da gente. Viver em Rosa
Branca todo esse tempo, entre vislumbres do passado, desencontros no presente,
com gente que abriu o coração e gente arraigada na mágoa e na maldade, foi como
abrir uma porta dividida entre realidade e ficção, dentro da nossa casa interna,
e mergulhar na história. Como se fosse possível entrar na livraria da Margot,
no quarto de figurinos da Josi, na casa da arquivilã Isabel, nas planilhas de
filmagem do incansável Bola, no computador do atormentado e suave Alain. Ou,
nas pegadas do passado, penetrar na mansão dos Castelo - ora espectral, com
seus portões enferrujados, ora resplandecente, com cortinas e móveis impecáveis.
Aquele
dia a dia em duas épocas se pregava em nós como se fosse real. E, por isso
mesmo, era real.
Espelho
da Vida foi um completo acerto do início ao fim, arrematado com apuro
poético e precisão dramatúrgica. Aguardei o desenlace como profissão de
fé: era preciso testemunhar, na hora e ao vivo, a conclusão da nobre missão de
Cris Valencia, que aceitou enfrentar as incertezas do passado para viver o
presente sem pesos ou pendências. Se isso parece papo de quem acredita, saibam
que é mesmo. Mas como não acreditar em Espelho
da Vida?
Confesso mais uma coisa: terei
saudades. Um projeto fascinante como
este, que aliou beleza cênica, atuações inesquecíveis, cenários naturais
inacreditáveis, arquitetura histórica grandiosa, caracterização de época
perfeita, fotografia espetacular, trilha musical delicadíssima e uma poética
que uniu a dramaturgia à espiritualidade com rara competência, vai ser difícil
de esquecer.
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