domingo, outubro 23, 2011

Senhora do engenho das palavras



Foto: Divulgação


Se Bethânia e palavra não são sinônimos, é como se fossem. Taí uma coisa que nunca tinha formulado na minha cabeça até vê-la, na semana passada, atuar numa leitura – espécie de “quarto ato” que coroa toda uma vida de pura intimidade com a vocalização da nossa amada língua-pátria. Só então tudo ficou transparente dentro de mim: foi com ela que aprendi, só em sentir, a verdade profunda por trás de cada sílaba portuguesa que se pronuncia.

A leitura “Bethânia e as palavras”, realizada no Teatro Sesc Ginástico em comemoração ao relançamento-resgate do livro “Maria Bethânia Guerreira Guerrilha”, de Reynaldo Jardim, confiscado pela censura da década de 1960, foi aberta com um vídeo que começou batendo forte. Além de comoventes depoimentos do autor, falecido em fevereiro deste ano, lá estava Bethânia cantando Carcará, no lendário show Opinião. Arre que eu nunca tinha visto aquilo! De saber, sabia só de fotos. Vejo que já era, então, um animal armando voo, com a coreografia da guerra diária de sobreviver, perfil e olhos em riste, a natureza descompassadamente contida.

Em 64 eu tinha oito anos, morava no interior, viajava pouco e lia muito. Aprendia a cor sombria dos tempos entre conversas entreouvidas, soturnas. Bethânia me chegou bem depois, mas o susto não foi menor. Com os discos Drama e Terceiro Ato e o seu exclusivo entrelaçar de músicas, letras e poemas, descobri que só ela sabia dizer as coisas. Sim, e de um jeito tão próprio que seria inútil tentar imitar. Quando Bethânia diz “minha mãe”, o mãe-ser é outro, não esse que a gente fala com a mãe da gente, nem o que se lê ou se escuta em qualquer outro lugar. Se ela diz "beleza", a dita fica mais bela. Ao falar “Ele é casado...”, Bethânia desenha e sublinha e reinventa a palavra como se ela possuísse um dicionário sonoro só seu, independente, e que nos desse de presente sentidos novos em cofrinhos para guardar.

Com Bethânia, as palavras passaram a acordar dentro de mim diferentes. Fez das canções de Dalva de Oliveira novos hinos, ofereceu segredos que alguma coisa do fundo de dentro sabia interpretar, nem eu sei como. Desde então, perdi no tempo o contato com o que as palavras eram antes dela chegar.

Esclareço que não sou fã de carteirinha. É inútil me perguntar em que ano Bethânia gravou tal disco ou cantou em tal lugar. Deixo isto para aqueles que a têm acompanhado mais de perto, ao longo dos anos. Mas tenho cultivado, vida afora, a sua presença – que vai muito além dos sete buracos da minha cabeça. Bethânia é, e nada mais é preciso. Nesse cultivo, cada ínfimo detalhe dos poucos shows que assisti conta muito. Ainda peguei o último no Teatro da Praia, paralisada às raias do êxtase. E alguns no Canecão, também. Na Flip 2009, em meio à inesquecível homenagem a Jorge Amado, caiu a ficha diante da majestosa figura de branco, cabelos fartos abaixo da cintura, as mãos num meneio que só ela é capaz de fazer, os olhos de estrelas. Consagração é isto, senti e guardei. O povo todo ali rendido, fechado com ela, como se não houvesse nem ontem e nem amanhã.

E assim, Bethânia e Caetano têm sido dois lados da mesma viagem, desde sempre – ela luz, ele cometa, montado na proa do futuro. Lembro, em particular, de um momento lindíssimo do documentário Pedrinha de Aruanda: Bethânia, Caetano e sua mãe Dona Canô, musa de todos nós, cantando juntos, sentados no quintal da casa da família, em Santo Amaro da Purificação, numa linda noite de luar. Pura delicadeza, coisa de famílias antigas, com raízes de jaqueira. Encantamento incompatível com a correria da maioria dos dias, mas que fica no coração da gente, refrescando como o sereno da noite.

(Rezam as lendas de minha família que um irmão de minha avó – Affonso Guimarães, que não cheguei a conhecer - deixou a tímida Pinheiral, no interior do estado do Rio, para trabalhar em Santo Amaro, na Bahia. E lá, teria feito a corte à jovem Canô, com intenção de noivar. Mas o destino não quis e acabou escrevendo certo: que filhos outros, senão estes nascidos de Seu Zezinho e de Dona Canô, poderiam ser tão especiais e únicos para a música do Brasil e para a alma dos brasileiros?)

Vejo a serena elegância de Bethânia neste recital quase camerístico, secundado por percussão e cordas. À leitura de poemas, acrescenta histórias íntimas, brinca e nos envolve como se estivéssemos todos sentados em torno de uma grande mesa, possivelmente na copa de uma vasta casa, tomando café com beiju, inhame, farinha de milho. Os pés de menina de areia continuam a voar nus pelo palco, vai lá, vem cá, e o corpo junto, onda e reverência, aceno e ventania. Se um gesto silencia até a respiração das pessoas, outro convida a cantar. “Ô cirandeiro, cirandeiro ô, a pedra do teu anel brilha mais do que o sol...” O coro é tímido, quase moldura para a voz forte-segura que nos acostumamos a receber. Mas se faz presente como uma certeza de que estaremos aqui, como alguém cantando ao longe, longe, para Bethânia saber que sua voz e presença, que vêm do coração, traduzirão para sempre, dentro de nós, toda a beleza da Natureza, onde não há pecado, nem perdão...