segunda-feira, março 28, 2011

Nas asas da mente

Natalie Portman, no filme "Cisne Negro"
Foto: Divulgação

Natalie Portman é uma atriz singular e, a meu ver, de grande valor. Tem uma trajetória que prima por uma intensa e honesta busca pessoal de conteúdo para expressar sua arte. O fato de ter escolhido atuar no filme Free Zone, do diretor israelense Amos Gitai (2005), já seria uma suficiente demonstração dessa atitude. Assim como toda a evidente dedicação e o profundo envolvimento com a personagem Nina, do filme Cisne Negro, de Darren Aronofsky, que lhe valeu o Oscar de Melhor Atriz 2010, sem dúvida merecido.

Se a atriz merece, neste momento, todas as láureas, o mesmo não posso dizer do filme, que assisti - tardiamente, reconheço - ontem à noite. É daqueles filmes cujo trailer promete mais do que efetivamente acontece na tela.

Confesso que ainda estou em dúvida se a proposta do diretor foi retratar o clima competitivo e opressivo dentro de uma companhia de dança ou se, na verdade, sua intenção central era retratar um surto psicótico de uma pessoa atormentada. Minha percepção fica com a segunda hipótese.

Desde o início, os recursos utilizados - câmera nervosa, ângulos fechados, espaços confinados, closes - revelam a essência da personagem Nina, presa em si mesma. Ainda que algumas questões pertinentes sobre o ambiente do ballet sejam apontadas - as dificuldades de uma diva para enfrentar o fim da carreira, a ambição de um diretor por reconhecimento, as pequenas invejas do dia a dia dentro de um corpo de baile, a obsessão pela magreza, e mesmo, no caso de Nina, uma mãe superprotetora e carregada de frustrações pessoais - , tudo isso não vai muito além de figuração, diante do poder absoluto da disfunção mental da protagonista. Chego a pensar que o pano de fundo poderia ser qualquer outro; nossa sociedade hipercompetitiva oferece um vasto leque de opções que poderiam ser usadas com o mesmo fim.

No centro da ação está Nina, num processo agudo de autodestruição inapelável. Não se demora a perceber que a bailarina em ascensão transita entre dois mundos, o real e o interno, este marcado por imenso rigor e crueldade, que ela usa com rara habilidade contra si mesma. Uma das virtudes do filme é saber mostrar isso com equilíbrio; a competente edição cria momentos de respiro para o espectador e, com respeito à sua inteligência, permite que ele deduza, conclua e acompanhe a ação ao mesmo tempo.

Não se percebe, em Nina, um único momento de inocência, de puro devotamento à dança; a cobrança interior está marcada no rosto desde a primeira cena (vale sublinhar, mais uma vez, o soberbo desempenho da atriz). Quem esperava uma doce menina sujeita às agruras de várias cobras criadas num ambiente hostil, logo se desilude. Nina carrega dentro de si algo de monstruoso, algo que é muito mais preponderante do que a realização do talento; a obsessão absoluta por uma perfeição impossível. Superar o limite é muito mais importante do que ser feliz.

Não, Nina não quer ser feliz; sua alma-gêmea interior é a obsessão, da qual jamais irá se livrar, independentemente da ação de qualquer pessoa à sua volta. O roubo dos objetos pessoais da primeira bailarina, nesse sentido, funciona como uma espécie de "âncora" da obsessão - por isso volta, no único (e breve) momento em que ela cogita se livrar do peso e os devolve. Quer dizer: isto na hipótese de serem reais o atropelamento e a internação da bailarina, que podem muito bem ser parte do imenso arsenal de artimanhas do processo doentio de Nina.

Do ponto de vista do pano de fundo escolhido - o ballet - o filme fracassa em oferecer ao público momentos de beleza. Os louváveis esforços de Natalie Portman para se transformar em bailarina resultam em cenas grotescas, sem nenhuma qualidade de dança. Aliás, o fato de o diretor não ter se preocupado em rechear com dança de verdade alguns momentos do filme reforça minha tese de que o que lhe interessa é a psicose, e não o ambiente do ballet. Do ponto de vista alegórico, a cena da "encarnação" do Cisne Negro é forte e interessante, ainda que tal encarnação, apesar dos esforços do coreógrafo e da protagonista, não vá além da máscara maquiada, do véu ou das asas. Quem já viu um Cisne Negro de verdade sabe muito bem disso.

Dentre os agentes que poderiam (mas não conseguem, na realidade) agravar o estado mental de NIna, destaque para o desempenho da soberba Barbara Hershey, no papel da mãe - a meu ver, uma figura injustiçada, pois seu aparente domínio sobre a filha ou suas frustrações se mostram pálidos em relação à dimensão do processo destrutivo que ocorre dentro de Nina. O coreógrafo, brilhantemente vivido por Vincent Cassel, é um personagem mais palatável, que equilibra bem suas contradições. E a grande revelação que é a atuação de Mila Kunis, que muitas vezes rouba a cena com a leveza e a eloquência de sua personagem perfeitamente colocada.

Cisne Negro é tudo menos um filme sobre o ballet. Nesse particular, o trono absoluto ainda é ocupado pelo brilhante Momento de Decisão, de Herbert Ross (1977), que tratou com muito mais habilidade e verdade os reais problemas que acontecem dentro de uma companhia de dança, assim como os sucessos e frustações dos bailarinos. Isso sem falar na atuação de dois monstros sagrados no sentido da palavra; Anne Bancroft e Shirley MacLaine. O resto, queridos amigos, é história.


quinta-feira, março 24, 2011

Manoel Francisco no show "Toma um trago e lava o coração"
Foto: Divulgação


Numa curva do tempo, o vento se dobra à verdade da arte. De uma estrofe de Vinícius, de um acorde de Baden e do fundo de dentro de um grande artista brasileiro, nasce um espetáculo que marca um lugar especial na cena do Rio: “Toma um trago e lava o coração”, na voz de Manoel Francisco, é um show musical que a cidade jamais esquecerá.

O talentosíssimo bailarino brasileiro de carreira internacional, que imortalizou diversos personagens nos maiores teatros do mundo, inclusive o Municipal do Rio, põe a nu a sua alma com incrível verdade e beleza. A voz clara, o coração na garganta, a interpretação precisa, o corpo inteiramente musical e uma memória afetiva feita de canções que, para dizer o mínimo, são capazes de contar todas as histórias, são alguns dos ingredientes de um show raro, no mais rigoroso sentido dessa palavra.

Há um bom tempo as pessoas parecem ter se esquecido do valor absoluto da intimidade entre plateia e artistas, hábito que a nossa tradição boêmia cultivava e que criava uma aliança diferente, toda própria, entre platéias e ídolos. A gente até costumava se referir aos nossos artistas pelo primeiro nome: “Ontem fui ver o Chico”, “A Marisa [Gata Mansa] está no Teatro Dulcina”, “a Nara cantou muito bem ontem”, “o Francis está fantástico no show”, e por aí vai. As megaproduções de hoje, além de cortar esse barato, transformam quase tudo em apoteose...

Um momento como “Toma um trago e lava o coração”, no pequeno e aconchegante Espaço Rogério Cardoso, da Casa de Cultura Laura Alvim, a meu ver vale mais que duzentos Canecões, quatrocentos Vivo Rio ou, com o perdão da má palavra, mil e trezentos Claro Halls.

Acompanhado por um baixo acústico, violão e guitarra, Manoel Francisco põe em cena o seu drama e a poesia das canções que ama desde sempre. Esse amor, logo de cara, é o traço mais evidente. Completamente à vontade, como se nos convidasse à sala de sua casa, Manoel conta as histórias das canções e homenageia compositores e intérpretes, como a dupla Evaldo Gouveia e Jair Amorim, Angela Maria e Altemar Dutra (Tango para Tereza, Somos iguais, Brigas) . Em interpretações absolutamente surpreendentes, evoca o Roberto Carlos da década de 1970 (As flores do jardim da nossa casa e Por amor). Ah, como eu me lembro desse disco do Rei, com um desenho a crayon do seu retrato na capa, que peguei emprestado e quase furei, na minha vitrolinha 007 preta!

Manoel Francisco dança com a voz de modo incomum. Se algumas influências transparecem, ainda assim são transformadas por um estilo cravejado de detalhes personalíssimos. Suas escolhas também são únicas: de Piaf, por exemplo, elegeu La Folle, numa versão absolutamente pessoal – que, tocante, ainda assim não nos naufraga, mas nos faz velejar na memória de um dos períodos mais ricos da música francesa. De Aznavour, nada do belo trivial de sempre; o baú de Manoel Francisco é bem mais fundo e recheado. Foi buscar a impressionante Comme ils disent e a mais que delicada Non, je n’ai rien oublié, perfumada de poesia, com a qual fez uma pública e comovente homenagem à primeira-bailarina Cristina Martinelli – que, extasiada, desfazia-se em emoção na primeira fila, ao lado de sua não menos emocionada mãe.

O mais interessante é que a forma de lembrar de Manoel Francisco não é nostálgica, no sentido da palavra; as canções tomam forma e corpo novos, atravessam o tempo com vigor, têm efeito mágico no momento em que se produzem novamente, quase como se estreassem, ainda que vivam, de múltiplas formas, na memória de quem as conhece de outras eras. A direção de Nana Caymmi é outra presença que Manoel pontua, de modo sensível, na história do espetáculo, assim como o roteiro de Alexei Waichenberg. Depois disso – diz, referindo-se a uma sequência que fecha magistralmente com Franqueza, de Maysa – a minha diretora disse: eu só posso sair daqui pra ser esfaqueada! , para dar apenas uma medida da assinatura consistente de Nana no processo. Aliás, a homenagem a Dorival Caymmi não poderia ter sido mais delicada: Um bom lugar/pra se amar/Copacabana... Poesia pura de um Caymmi encantado pelo Rio, cidade e estado que adotou, após se apaixonar por sua Stela, e acrescentou à baianice que imprimiu no nosso sangue para sempre.

O show “Toma um trago e lava o coração”, de Manoel Francisco, deveria ficar em cartaz indefinidamente, e não apenas até dia 30 de março. Eu, pelo menos, jamais vou conseguir me separar dele! É o momento magistral de um artista que viveu tudo e ainda tem muito mais para nos fazer viver. É toda uma nova forma de sentir, evocar, emocionar, fabricar felicidade em forma de canções. É uma voz que cria continuamente, um estilo contundente e novo, entre o nunca-esquecer e o re-conhecer. É uma porta de poesia a nos transportar entre mundos que, felizmente, ainda são possíveis nos dias de hoje, num pequeno ambiente de imensas possibilidades, artísticas e amorosas. A Manoel Francisco, o meu aplauso de pé.