domingo, novembro 07, 2010

Em defesa da obra de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato

Qual é a ideia? Instaurarmos uma Inquisição literária no Brasil?

Não posso me furtar à minha responsabilidade de brasileira, quando recebo a informação de que uma senhora Nilma Lino Gomes, qualificada na matéria como educadora da Universidade Federal de Minas Gerais e conselheira da Secretaria de Alfabetização e Diversidade do MEC, recomendou o banimento da obra de Monteiro Lobato da lista de livros a serem distribuídos às escolas brasileiras, sob acusação de “caráter racista da obra”. A matéria dá conta, também, que a recomendação da dita senhora teria sido aprovada pelo Conselho que integra.

Estamos no ano de 2010. Acabamos de sair de uma acalorada discussão eleitoral em que um dos temas mais disputados foi a liberdade de expressão. Possuímos uma constituição democrática e vivemos em um estado de direito. Como é que, dentro desse quadro, inicia-se uma caça às bruxas em cima da obra de Monteiro Lobato, reconhecidamente um dos mais importantes escritores da nossa literatura?

Monteiro Lobato foi o primeiro autor brasileiro a dar às crianças a oportunidade de vivenciar, na literatura, uma infância brasileira, nacional, legítima, com elementos da nossa cultura. Lobato nos permitiu crescer com uma consciência de brasilidade. E dentro dela ainda nos ensinou geografia, gramática, aritmética, nos deu uma boa noção sobre mitologia – e ainda permitiu, generosamente, que os heróis, heroínas, príncipes e princesas dos contos de fada da literatura internacional convivessem com nossas tradições. Tenho uma profunda dívida de gratidão para com ele e sua obra, pois fui uma dessas crianças. Aliás, uma entre milhares, que não ficou reduzida a um imaginário oficial que não nos considerava capazes de “reinar”, criticamente, em meio a todo tipo de informação. Ganhamos uma consciência coletiva chamada Emília, por meio de quem as dúvidas e questões que toda criança tem ganhavam, mesmo com sua dose de fantástico, uma possibilidade de expressão.

Sem querer lhe conferir um grau de importância a que não faz jus, pergunto-me de onde sai uma Nilma Lino Gomes da vida, com essa postura retrógrada e totalmente incompatível com a realidade do mundo, que se arroga o direito de decidir se a obra de Lobato é ou não racista, se é ou não benéfica à sociedade brasileira, se é ou não digna de circular nas mãos de milhões de crianças com potencial de ser felizes como eu fui ao lê-lo. Vamos ter Inquisição? Temos agora um Conselho que nos diz o que devemos ler? Lembro-me de uma frase incrível que Adélia Prado falou, numa palestra na Flipinha, há alguns anos: - Livro tem que ser oferecido às crianças que nem banana na feira. Elas olham, escolhem e pegam o que querem. Salve, Adélia!

Não reconheço nessa senhora e nem em pessoa alguma autoridade para julgar e expurgar a obra de um autor como Monteiro Lobato em cima de minúcias e especificidades sobre as quais o crivo de uma simples análise crítica, em vez de condenar, pode servir para traçar um retrato da sociedade em que Lobato viveu, do período em que sua obra foi escrita e do pensamento de um Brasil que, se pararmos para pensar, não mudou tanto assim. Porventura os prédios de luxo das grandes capitais não selecionam quem pode ou não usar os elevadores principais? Porventura não convivemos, no século 21, com discriminação salarial que atinge, por exemplo, mulheres e pessoas negras? Por acaso a nossa sociedade não tem “conteúdo racista”? E o que vamos fazer com ela, queimá-la em praça pública?

Monteiro Lobato, como qualquer pessoa, cometeu erros em sua trajetória, inclusive no exercício da crítica literária. Mas esses erros em nenhum aspecto desmerecem a qualidade literária de sua obra e sua imensa, incomparável contribuição à sociedade brasileira, à nossa literatura e também ao nosso desenvolvimento, pois foi o primeiro a vislumbrar o potencial da siderurgia e chegou a ser preso por afirmar que o Brasil possuía reservas de minério de ferro e de petróleo.

Lembro-me de ter lido, há mais de dez anos, uma matéria jornalística em que se aludia a algumas passagens racistas na obra de Lobato. No entanto, uma professora especialista em sua obra, cujo nome infelizmente não me lembro, ponderou que “quem fala dessa forma da obra de Lobato demonstra não ter capacidade para compreender-lhe o alcance”. Tenho que concordar. Lobato demonstra, em toda a sua obra literária, simpatia e respeito pelo oprimido, pelas pessoas cujo valor a sociedade, de alguma forma, não reconhece. Agora me respondam: sua obra magnífica, profundamente analítica em relação à sociedade brasileira e profundamente esperançosa num futuro melhor para as crianças, sem falar em sua riqueza como literatura, no uso da língua portuguesa e na dimensão dos conhecimentos que transmite, vai pagar por um ou outro pecadilho racista que qualquer um de nós poderia cometer e ficaria por isso mesmo? Francamente!

Senhor Fernando Haddad, nosso Ministro da Educação, por favor! A sociedade brasileira não admite mais esse tipo de atitude. A censura foi abolida junto com o ocaso do regime militar. Nossa cultura não pode ser submetida a conselhos ou ditos “notáveis”, que se julgam com poder de determinar o que podemos ou não podemos ler. Só nos falta agora permitir que Monteiro Lobato – que tão perseguido foi, em vida, por suas ideias progressistas – tenha sua obra “julgada” por uma educadora obscura e obscurantista que infelizmente conquista, dessa forma tão lamentável, os quinze minutos de fama vaticinados por Andy Wharol.