sábado, outubro 25, 2008

E do silêncio fez-se o espanto

Lluís Llach



Foi uma longa espera, já nem sei de quanto tempo. Um dia, no "dreaMule" (sim, a tecnologia também aprende a sonhar), encontrei e pus para baixar o Concert d'Acomiat, ou seja, o concerto de despedida de Lluís Llach, realizado dia 24 de março de 2007 em Verges, povoado onde passou sua infância e, segundo ele mesmo, "onde tudo começou".

É o tal negócio: não era prioridade até o momento em que os dígitos começaram a anunciar a conclusão do download. Daí em diante, a ansiedade foi crescendo a olhos vistos. Ontem, afinal, o arquivo chegou completo. Que felicidade!

Mas eu não sabia o que me esperava, de fato. Por mais que fosse capaz de imaginar, eu não estava preparada para o que iria ver, ao longo de três horas de emoção pura, bruta, concreta.

A dois passos de Lluís no campo magnético e ilusório da tela de 17 polegadas, o seu rosto sincero e comovido, enorme, quase se deixava acariciar. Mesmerizada, as mãos no queixo, debruçada sobre a mesa do computador, eu não mais distinguia distâncias ou me reconhecia no tempo e no espaço: estava em Verges, com ele, os olhos nos olhos cheios do agora e da saudade que se produzia junto com a música, que antecipava o adeus.

Si em dius adéu...

A gravação feita pela TV3 barcelonesa e dirigida por Lluís Danès, cineasta que colaborou muito com Lluís Llach, não é apenas um registro rotineiro, com bons cortes e tecnologia. Longe disso. Danès colocou a câmera a serviço da mais fiel expressão da tragédia amorosa que se abateu sobre os dois lados: de um o palco, onde a simples alegria de viver e cantar juntos se produzia como se o mundo fosse acabar a qualquer momento, e de outro a platéia, onde milhares de olhos marejados de todas as idades se esforçavam por suportar a ausência que crescia na presença das canções.

Lluís planejou o encerramento da carreira, isso é verdade. Por razões e razões que nenhuma resposta técnica, elaborada, consegue mostrar. E mesmo com todos os planos, condições e soluções possíveis, ninguém queria e nem conseguia acreditar.

Morri tantas vezes ontem, ao contemplar os olhos que Danès tão bem soube mostrar, o estarrecimento, cada sorriso de mar, a taça quase a transbordar, o senhor que olha em frente, mas para dentro, e ali deixa passar toda uma vida, o rapaz jovem e bonito com o filho no colo, a cantar, a cantar, o marido amoroso que beija a mão da mulher, há tempos entrelaçada entre as suas, a tristeza tão digna nos olhos de Maria del Mar Bonet... A câmera passeia por milhares e milhares de rostos, cabelos, gorros, golas de casaco, bocas a murmurar canções, milhares e milhares de olhos brilhantes, boiantes, absolutamente desolados, lutando tossudament para suportar a perda anunciada.

E o rosto de Lluís Llach vai e volta, cada vez mais perto. Quase ignoro a tela que nos separa, quase posso respirar em cima dele. E mergulho nas eras fundas que transparecem dos seus olhos claros de terra e lua, de uma cor que ninguém explica, de uma força incontrolável. Ainda outro dia falava da sua mirada com a amiga Àngels, que tanto o conhece de uma vida inteira, talvez de algumas outras. Os sentimentos também se debatem nesse rosto, em cada pequena ruga, em olhares cúmplices para os músicos, no esforço muitas vezes sobre-humano para tentar fazer com que as águas jamais transbordem dos olhos, melhor seria que voltassem para dentro assim como vieram. E como vieram, será?

Colada a ele, sei que olha para o mundo, o pedaço de mundo feito daquela gente que é o seu país, o seu país são aqueles olhos atônitos à beira do drama que estão à sua frente e talvez acreditem até o último momento - que a fé move o povo e o povo é a verdadeira fé - poder conter o inevitável, desarmar a vontade que sabem firme, desmaterializar o adeus.

Todos os músicos tocam com visível prazer, olham-se com sorrisos de orgulho, sorriem com olhos de amor, produzem ternamente a música do fim como se fosse sempre, como se o palco de Verges fosse inesgotável e as horas não existissem. Incrível como Danès teve a extrema sensibilidade de nos deixar participar dessa intimidade profunda, do sentimento comum entre eles, da sua verdade em cores fortes.

Nas suas célebres conversas entre canções (satirizadas tantas vezes por seu brilhante imitador no programa humorístico Polónia), Lluís compartilhou em Verges a vida inteira. Meu coração doeu de orgulho, feliz, ao vê-lo falar da forte impressão que lhe causou o olhar de Vinícius de Moraes, e das canções do nosso poetinha que o inspiraram a escrever Sabessis bé, sua mais emocionada homenagem ao falecido amigo e poeta Miquel Martí i Pol. Tem razão o Lluís; de que outro modo, senão o brasileiro, ele conseguiria expressar musicalmente a sua saudade - sentimento que, ao contrário da palavra que o define, não é privilégio nosso, afinal?

A emoção beirava todo o tempo o insuportável. Sinceramente, não sei como aqueles fãs ali reunidos conseguiram suportar. Era como se se comprimissem contra paredes de vidro, esticando o coração, os olhos, as palmas das mãos, as lágrimas espalhadas pela face, até as velas acesas em vários momentos.

Por que?, eu não me cansava de repetir, falando com minhas próprias águas. O que faz um homem com tanta música por dentro decidir partir para uma vida comum, por mais que o tempo livre e o anonimato, às vezes, possam seduzir?

Li esses dias uma frase de outro Luís que também adoro, Louis Armstrong: "Músicos jamais se aposentam. Só param quando não há mais música dentro deles."
Impossível não pensar em Llach. Sobretudo hoje, ao ver o vídeo de sua entrevista sobre vida e vinhos no excelente programa "La clau del vi", do Canal 33 da Catalunha. "Jo me anyoro molt", sinto muita saudade, admitiu. E eu sem conseguir calar o tal "Por que?"!!

Verges, final de festa. Lluís Llach desce ao meio do seu poble, dos que vão amá-lo eternidade afora. Muitos beijos, abraços, e ele acaba desistindo de manter na cabeça o imemorial gorrinho de lã, com tantos afagos por todos os lados. Eu já tinha visto isso no YouTube, mas com o concerto inteiro o gest correcte dos fãs - que cantam a cappella a emblemática "L'Estaca" e depois "Laura", muito afinados - é muito mais forte, derruba mesmo a gente. Nem o mais insensivel do seres conseguiria resistir.

Olhar para Lluís Llach, tanto no palco como nas entrevistas, é sentir-lhe a música pelos poros. Quando sua, não cai água, brotam notas da pele. Como os pássaros do pentagrama, estrofe de um poema de Xavier Monsó Brignardelli, um dos sensíveis fãs que fazem parte do fórum do artista.

Queria mesmo o impossível: estar no seu coração, para saber como ele consegue segurar a onada de canções que lhe inunda o peito todos os dias. Ah, quem dera se ele se dignasse a deixá-las sair uma vez por ano, pelo menos, para encontrar os amigos fiéis, apaixonados e sinceros, que naquele dia 24 de março de 2007 voltaram para casa ou para os hotéis carregados de um vazio que sabiam ser impossível de preencher.

Ao falar de Martí i Pol, o próprio Lluís admitiu que o espaço deixado por ele só faz ampliar-se. Diante da morte, porém, há pouco a fazer - talvez um poema, uma canção, uma homenagem sentida.

Vivo (muito vivo!), vibrante, docemente aguerrido, forte como um pássaro do deserto, Lluís pode, se quiser, marcar encontros. Ainda que esporádicos ou, como ele diz, pontuais. Há muita alma e sonoridade, ainda, para compartilhar. Tantos de nós precisamos, e muito, daquela tendresa que só ele tem, e que ens cura quan fa por la solitud!...


* Vocabulário catalão

Tossudament - obstinadamente (referência à canção "Tossudamente alçats")

Si em dius adéu - Se dissermos adeus (da letra da canção "Que tinguem sort")

Mirada - olhar

Jo me anyoro molt - sinto muita saudade

poble - povo

gest correcte - gesto correto (referência a uma estrofe da letra da canção "Amor particular")

onada - onda, palavra muito usada por Lluís Llach em suas letras

La tendresa... que ens cura quand fa por la solitud - A ternura que nos cura quando a solidão dá medo (da letra da canção "Tendresa")

quinta-feira, outubro 09, 2008

Quatro anjos em um (ou "À Seita, com carinho")

Instantâneos de Àngels, por Jaume Lujan

Cada vez mais, a vida me confirma a crença de que ser fã é uma qualidade especial do espírito. Tem gente - como eu - que nasce com esse tipo de inclinação. Coisa que muita gente pode considerar "menor", "infantilidade" ou coisa que o valha. Há quem ache, inclusive, que quem tem natureza de fã não merece crédito.
Em defesa própria e também dos muitos fãs maravilhosos que conheço por este mundo afora, venho dizer que essas visões desfocadas não passam de preconceito. Eu, particularmente, gosto muito de ser fã - e de muita gente, entre famosos e anônimos, próximos ou não. Com o meu eterno prazer de encontrar personagens fabulosos pela vida, digo que o fato de ser fã só tem me ajudado a colecioná-los. E olha... eu garanto que a minha coleção tem preço. E não há leiloeiro no mundo que tenha o poder de arrematá-la!
Para minha felicidade, eu só faço aumentá-la. Na foto acima está Àngels, o anjo de verdade que acaba de valorizar imensamente o meu acervo de grandes personagens humanos. Àngels é especial em muitos sentidos, mas muito particularmente por ser, também ela, uma fã.
Foi a primeira a receber-me - e com que carinho! - no universo virtual de Lluís Llach, a lista ou fórum chamado Cafè Antic. Hoje estamos construindo uma bela amizade regada a música, idéias e embebida na sabedoria da resistência. Resistência, aliás, praticada com toda poesia pelo grupo de fãs mais afetuoso, animado, exacerbado e apaixonado que conheço: a placeta, como eles mesmos se definem, ou a Seita, como o próprio Llach carinhosamente os chama.
Freqüento a lista, dentro das minhas possibilidades e guardada a distância transcontinental. Participo também, quando posso. Já me vi envolvida em acaloradas e respeitosas polêmicas musicais, já me deliciei com os textos do incrível Gerard, já falei no msn com a Montse e troquei emails com vários integrantes. De Àngels, tenho me aproximado mais - talvez por termos em comum o universo do ferro e do aço, talvez por eu ter sido, em alguns momentos da vida, próxima de sindicatos operários, ramo em que ela milita com verdade e energia. Ou talvez, simplesmente, por Llach, e pronto.
Mudei com a lista. Resolvi aprender catalão e engrossar as fileiras do fortalecimento do idioma (embora ainda esteja bem no bê-a-bá). Entrei em vários mundos llachianos que enriquecem minha vida pessoal. Tenho conhecido mais profundamente a música extraordinária do grande artista que é Llach. Mas, sobretudo, aprendo intensamente, todos os dias, algo sobre a natureza humana.
Se quisermos de verdade, podemos ser iguais sendo diferentes. Se quisermos, deixamos de lado nacionalidade, idioma, cor, credo, crenças, tudo em nome da causa maior da nossa humanidade. Se quisermos, podemos encontrar pontos comuns com cada pessoa, por mais diferente de nós que ela possa parecer. Assim me sinto em relação a essa seita amorosa, verdadeira, firme, aberta e receptiva, musical, capaz de santas loucuras e de construir tanta felicidade.
Hoje vi muitas fotografias dos eventos familiares animadíssimos que organizam. Lá estão todos com suas mulheres, maridos, filhos. A criançada llachiana se diverte, curte com os pais, brinca, aproveita. A vida em família é mais um lado forte de ser fã. No caso da Seita, a família da música faz com que todas as famílias se encontrem, cantem juntas, lembrem do que é bom, esqueçam as tristezas e construam coisas bonitas.
Lá está Llach entre eles, rindo, posando para fotos, fazendo boas brincadeiras em momentos que deixam saudades, pois afinal o cantautor de Verges - ou simplesmente "o de Verges", como muitas vezes é chamado - deixou os palcos, mudou de vida e se dedica à música que se produz nos tonéis onde envelhece o cobiçado vinho Vall Llach, produzido em sua vinícola. Ou, uma vez por ano, entrega-se à direção artística da Procissão de Verges, inspiração de um dos belos temas do emblemático cd Verges 50.
Mas a placeta - ou seja, a pracinha do bairro, o lugar onde tudo acontece, segundo me explicou a incansável Àngels - não desiste. O amor pelas canções é incurável, o respeito pela decisão do artista uma lei entre eles. Fazem planos, preparam um disco, formam grupos, coros, trios, quartetos - reinventam sempre o espírito llachiano que os move. Cujo lema bem poderia ser, por exemplo, "per això, malgrat la boira, cal caminar", ou seja, seguir em frente apesar de tudo, como reza uma das letras mais emblemáticas de Lluís Llach, da canção Que tinguem sort.
Sorte mesmo tenho eu, de ter o privilégio de aprender com eles.