quarta-feira, julho 30, 2008

Dercy

Dercy Gonçalves
Foto: Divulgação

É estranho que este blog tenha, em tão pouco espaço de tempo, registrado tantas despedidas: Zélia Gattai, Jamelão... e agora Dercy, 101 ou 102 anos, grande musa do imaginário popular.

Não desejo aqui ficar no tom da tristeza nem criar uma vibração saudosista, mas não há como não reconhecer que o andar de cima anda movimentado, com pressa de transferir tantas personalidades queridas, e todas de uma vez!...

Quando nasci, a impávida Dercy Gonçalves já tinha dobrado o Cabo da Boa Esperança. Posso dizer que me criei com a sua imagem na pauta da televisão - e não nego que sempre gostei dela. Já era uma figura carismática na era anterior ao palavrão no ar; divertida, espevitada, com expressões faciais fortes e impagáveis e sempre um comentário espirituoso na ponta da língua.

Assisti muitas entrevistas até comoventes da filha de Madalena, uma mulher vivida e segura, que possuía espiritualidade e deixava entrever a decência do seu caráter. Lembro-me que uma vez alguém lhe perguntou qual era o seu maior desejo na vida, e ela disse: "Que a humanidade se entenda para produzir a paz, e que meus netos sejam os maiores homens do mundo." Achei bonito, puro. Dercy era resolvida, enfrentava-se, não tinha vergonha de nada, era positiva e interessante.

Nunca a vi dentro do rótulo de escrachada, como meio mundo fazia questão de classificá-la. Era uma atriz de verdade, uma comediante inteiríssima - e isso, convenhamos, é muito difícil de fazer. É incrível que as pessoas gostem de ouvir alguém dizer mil palavrões, paguem ingresso no teatro para vê-la - e no entanto discriminem essa pessoa justamente por isso. Creio que essa foi a injustiça básica com Dercy, uma verdadeira marca de brasilidade, uma boa tradução do nosso espírito boa-praça. E corajosa, por tudo o que enfrentou na sua época, para firmar sua vocação e dar rumo ao próprio destino.

Foi triste para mim vê-la flertar com a senilidade, pois eu conhecia a outra Dercy, sempre imperturbável e senhora de si. Não gostei de ver as pessoas se aproveitarem do seu estado para expô-la indevidamente na frente das câmeras. Afinal, ela merecia, em tudo e por tudo, a reverência dos brasileiros. Ajudou a construir a memória deste país; foi uma personagem de garra e amplitude, que nunca deixou de lutar - e atravessou dois séculos sorrindo e fazendo sorrir.

Deixo aqui o seu rostinho maroto, no auge da carreira. Uma foto que sintetiza a alegria de que foi portadora, e que encheu o nosso coração a vida inteira. Dercy foi muito gente, foi muito Brasil. Curvo-me à sua passagem, certa de que a memória do povo, mesmo com fama de ser curta, há de lhe fazer toda a justiça.

domingo, julho 20, 2008

Hora de encontrar a turma das filas

ESPECIAL FLIP 2008

Flip 2008: embandeirada
Foto: Maurette Brandt


A Festa Literária Internacional de Paraty, ou simplesmente FLIP, tem lá suas peculiaridades: todos os anos a compra de ingressos é uma angústia longa que se transforma em stress e, às vezes, tem final feliz. Estamos sempre sujeitos ao enlouquecimento espontâneo de um dono de pousada que pode, a qualquer momento, ter um surto e achar que está perdendo dinheiro: motivo suficiente para aumentar preços sem critério e suscitar uma longa e complexa negociação. Isso sem falar nas passagens de ônibus, o já proverbial tem-não-tem-ônibus-extra, quando todo mundo sabe que vai ter, tem que ter, pois a procura é grande e a empresa, logicamente, não vai querer deixar de faturar.

Mas essas coisas todas têm um pouco de graça. Todos os anos tem a célebre fila nos pontos de venda, pois os pobres mortais que se candidatam à verdadeira prova de resistência que é assistir a 20 palestras - ou mesas, como a organização as chama - à razão de cinco por dia têm de aguardar ansiosamente que seja anunciado o dia da venda e o horário em que as bilheterias, a internet e o telemarketing vão abrir, sempre todos ao mesmo tempo. Tudo em nome de uma democracia fictícia que pressupõe - em intenção, não em gesto - garantir o acesso de todos.

Meu ponto de venda é a loja da Modern Sound, em Copacabana, a dois passos de casa. Sempre acho que serei a primeira, pois tenho uma paciência praticamente inquebrantável para me enquadrar em longas esperas. Pois este ano fui a terceira - o que parece bom, salvo se a velocidade dos compradores (e vendedores) online não superar a compra direta. No caso da Flip, nunca se sabe. Mas a fila - que na Modern Sound merece a deferência de um civilizado par de bancos compridos - é um local de encontros. Você sempre vê as mesmas pessoas, conhece algumas novas, ouve histórias, administra os boatos que proliferam - é mais caro, tem taxa, não tem taxa, acho que já acabou e terrorismos desse quilate - e, no mínimo, tem diversão garantida por algumas horas.

Este ano, o "sistema" - nome genérico que no meu tempo personificava a ditadura e hoje representa a rede informatizada - ia abrir às nove. Sabedores disso, os pontuais fileiros pediram ao dono da Modern Sound para abrir a loja antes do horário normal de nove e meia. Às dez, já com quase três horas de fila e muito papo rolando, foi anunciado aos quatro ventos pelo segurança, no papel de um autêntico jogral, que haveria um atraso. A tensão progride, alguns gesticulam, outros tentam por telefone, alguém diz que em casa não conseguem acessar as vendas pela internet.

- É o sistema...

Por fim, às onze-quase-doze, o tal sistema resolve funcionar. Só deixam entrar um de cada vez, para não dar problema; aguardo por minutos agora intermináveis na porta, até que me liberam. No caixa, porém, dá-se o milagre da suavidade. Peço dois pacotes completos, entrada inteira. A menina processa e os ingressos começam a jorrar rapidamente da impressora. Em menos de 15 minutos, tenho todas as folhinhas na mão, com as mesas discriminadas e os hologramas perfeitos para leitura eletrônica. Em nenhum momento ouvi algo sequer parecido com "Acho que não tem..." Pago e, na dúvida, resolvo afundar-me numa das poltronas da Modern Sound para destacar os ingressos, contar e conferir.

Tudo certo. Já é quase uma da tarde. Despeço-me de um ou outro companheiro de fila e sigo para casa carregando os preciosos (e caros) ingressos para a Tenda dos Autores. Ao chegar, descobriria que esquecera os óculos no balcão, mas foi só questão de telefonar e passar para pegar no dia seguinte.

Uma amiga que comprou por telefone sofreu um pouco mais, pois era sempre o número 89 ou coisa que o valha na fila de espera, mas afinal foi atendida e comprou o que queria. Já no ônibus, porém, começo a ouvir histórias de não-tem; gente que chegou à noite e não achou quase nada, gente que viu a fila de idosos arrebatar o estoque inteiro...

Uma coisa eu aprendi, no penoso ano em que a venda ficou por conta das Americanas.com; a Flip não põe todos os ingressos à venda no primeiro dia. Eles dividem em cotas e vão soltando aos poucos. No tal ano das Americanas, quando entrei na internet - poucos minutos após a abertura das vendas - já não havia quase nada. Comprei o que pude e, dia após dia, dedicava-me ao trabalho de formiguinha de garimpar ingressos. Nesse afã, acabei conseguindo entradas para quase todas as mesas na Tenda dos Autores.

Já em Paraty, nas seis filas que se formam para o acesso à tenda - que continuam absolutamente manuais, mesmo após seis anos - a gente encontra o pessoal de todos os anos. Há pessoas com quem nunca trocamos uma palavra sequer, mas que conhecemos de longa data - quer dizer, de longa fila. A senhora acompanhada da filha, que quase sempre é a primeira como nós, a outra senhorinha de descendência indígena, os cabelos ainda pretos, outras duas amigas que sempre vêm... Criamos um vínculo estranho com essas pessoas. O fato de vê-las parece nos assegurar uma familiaridade, um compromisso inusitado que só se dá com flipianos: o início de julho é guardado a sete chaves para aqueles momentos ora fortes, ora perturbadores, ora engraçados, para aquela sala-de-estar com escritores que a gente admira, com outros de que só ouvimos falar e muitos que nem isso. Mas aprende-se, e como! As idéias e linguagens nos cercam com sua novidade e espírito. Cabe a nós aproveitá-las e engordar a alma de beleza, realidade, inconformismo, susto e emoção.

Porque a Flip, com seu jeito único, é um pouco de tudo isso.