domingo, fevereiro 25, 2007

Do Cacique do Rochedo às folhas secas caídas de Mangueira

Em Conservatória...

Carnaval em Conservatória é algo que caiu no gosto do meu coração, desde o ano passado. Aqueles cinco dias no Hotel Rochedo, regados a marchinhas de sempre, blocos de rua e tranqüilidade, fizeram-me repetir a dose em 2007. Afinal, não é todo dia que se pode brincar como antigamente até se acabar pelas ruas, sem precisar ficar com um olho no samba e outro na violência.
Ah, mas não é só isso: tem a segunda-feira, esperada como quê, quando a gente desfila, com toda garra, pra defender a bandeira do Grêmio Recreativo Escola de Samba Cacique do Rochedo. Desfile sim, tá pensando o quê, com comissão de frente, carro abre-alas, alegorias e belas fantasias. No ano passado, o enredo foi a Bahia; este ano, foi a vez dos astros e da astrologia.
Tem também o Bloco do Bacalhau, o do Arrasta, a Masmorra com seus jovens e indômitos integrantes, o Chorinho, o Unidos do Benfica... Carnaval em Conservatória é uma festa. Festa familiar, onde todos os amigos se encontram na cidade que, por uns poucos dias, faz a seresta dormir e marca um encontro folião com os antigos carnavais. Que de antigos só têm mesmo a boa música, porque a energia, ah, essa é novinha em folha e parece não acabar nunca. São incontáveis os personagens que saem em todos os blocos, na avenida de pedra lascada construída por escravos, ela em si um desafio feroz à resistência dos pés. Mas o povo não parece se importar: a alegria é genuína, leve e simples. E contagia a gente.
Na quarta-feira, um bem-humorado Bloco do Caixão percorre as ruas contando a história do morto, esse ano apelidado de René Senna, que saiu na sexta-feira pra comprar cigarros e voltou num estado lastimável: restaram-lhe apenas o esqueleto e, claro, a danada da cachaça...
Se Conservatória está na história da seresta brasileira, com certeza está também na história de um carnaval muito vivo, que não se contaminou de funk, axés ou outros modismos duvidosos. Ainda é o bom e velho carnaval das marchinhas e dos sambas-canção, que certamente faria o querido Braguinha e muitos outros compositores sorrirem de gosto lá do céu.

... e na Sapucaí

As folhas secas caídas de Mangueira, que tão bem marcaram a homenagem da verde-rosa à língua portuguesa com palavras do mestre Nelson Cavaquinho, foram pisoteadas esse ano pela deselegância.
Das fantasias? Decerto que não. Dos integrantes? Muito menos. Faltou samba no pé? Nunca, em tempo algum. Faltou, mesmo, foi amor - aquele amor de verdade que nós, ferrenhos mangueirenses, sempre acreditamos existir no coração da mais-querida por todos aqueles que a fizeram grande e eterna.
Esse ano a Mangueira ficou devendo à Sapucaí a presença de dois entre os maiores: Beth Carvalho e Nelson Sargento. E por que? Por pura deselegância, pinimba, bobagem. A direção negou à divina Beth um pedido simples: sair num carro, porque sua coluna não agüentava mais o esforço no chão. E se "esqueceu", imagina, de confeccionar a fantasia da mulher de Nelson Sargento, talvez o mais importante entre os compositores vivos da escola.
Foi com tristeza que vi Beth Carvalho, com seus olhos sempre esperançosos e pronta para o desfile qual Cinderela para o baile, aguardar na avenida pela promessa de um carro, feita pelo presidente da Mangueira, um tal Sr. Percival Pires, conhecido como Perci. Mais triste ainda foi saber que, ao se dirigir ao carro dos baluartes, onde lhe informaram que iria sair, Beth foi expulsa com ignorância por um senhor que nem mesmo ela, que respira Mangueira há 36 anos, sabia quem era.
E o que dizer de Nelson Sargento? O presidente da Mangueira alegou que a fantasia de sua senhora estava pronta, "ele que não foi buscar." Nelson, do alto de sua humildade e elegância, informou que, no barracão lhe disseram apenas que "não tinha nenhuma fantasia em nome de Dona Fulana".
Não saiu o grande Sargento com sua companheira, não saiu Beth Carvalho com todo seu amor e empenho pela verde-rosa. E a gente, em casa, ainda tem de ouvir palavras deselegantes como as do soberbo Max Lopes, grande carnavalesco, menosprezando Beth Carvalho: "A Mangueira é uma escola muito grande, ela não combinou nada..."
Quem conhece minimamente a história de Beth Carvalho sabe do seu caráter, da sua coerência e de sua dedicação à escola e ao samba de modo geral. Daqui a uns poucos anos pouca gente se lembrará de um tal Sr. Percival Pires, ah, sim, aquele que foi presidente da Mangueira. Menos tempo levará para que se esqueçam do tal senhor que expulsou a cantora, aos gritos, do carro dos baluartes. Max Lopes com certeza figurará por muitos anos entre os grandes da história do carnaval da Sapucaí.
Mas e Beth Carvalho? Como será lembrada?
Será lembrada sempre por sua linda voz, seu talento, seu encanto, pelos grandes sucessos, por sua empatia absoluta com o povo, que se rasga por ela em todas as ocasiões. Num show em Volta Redonda, há uns quatro anos, com ingressos distribuídos gratuitamente, houve câmbio negro e polícia na porta. A voz de Beth Carvalho entoará "Coisinha do pai" por toda a eternidade em Marte. Podiam ter escolhido qualquer artista, mas escolheram Beth. Na Mangueira, falou verde-rosa, falou Cartola, Dona Zica, Dona Neuma... e Beth Carvalho. Alcione também, Rosemary também, claro, assim como todos os grandes compositores que fizeram e fazem sua história. Mas Beth Carvalho continua a ser um dos mais expressivos sinônimos de Mangueira, haja o que houver e doa a quem doer.
Como é que, então, um simples burocrata tem o poder de humilhar e desprezar uma artista como Beth Carvalho, um ícone como Nelson Sargento? Que me perdoe o Sr. Percival Pires, seja lá quem for, mas as folhas secas caem e novas nascem. A Mangueira, Beth e Nelson não passarão, com toda certeza. Assim como vai demorar a passar a triste impressão que deixou no público, em especial nos mangueirenses, esse lamentável episódio.
Não se pode pensar em Mangueira sem reverenciar a sua história e, sobretudo, os seus grandes personagens. Beth, com seu sorriso, deu-nos uma grande lição no Desfile das Campeãs, ao tremular a bandeira verde-rosa e cantar o samba da arquibancada. Por que ela, ao contrário de muita gente, sabe exatamente qual é o seu lugar no coração da Mangueira e do Brasil.

Ceará em generosas doses

Depois de uns ventos algo contrários em setembro/outubro, revisitei o Ceará nesse recente e ensolarado fevereiro.
E com que felicidade!
Algo me dizia que eu tinha de voltar logo a Fortaleza para enxergá-la direito, recompor sua poesia no meu imaginário um tanto manchado de incertezas. Percorrer as ruas de mãos dadas com o sol da manhã, a brisa da tarde, o burburinho da Beira-Mar, o cheiro de castanha torrada na hora. Almoçar fartamente acalentando o mar, abraçada pelos ventos benfazejos a desmanchar os cabelos dos coqueiros. Jantar em torno do Dragão do Mar, observar as pessoas, aprender a complexa ciência de comer caranguejo toc-toc...
E foi exatamente isso que fiz. Em boa hora e com bons fluidos por toda parte. Partimos eu, filha e sobrinha para a terra de Iracema sem atrasos nos vôos, hotel impecável, passeios reveladores a Cumbuco, Morro Branco e a incrível Serra de Baturité, com seus mosteiros, hortênsias e aves tropicais.
Boates também, como não, afinal quem tem pelo menos um adolescente na família não sabe o que está perdendo: a irrepreensível Mucuripe com seus vários espaços e tendências, a estilosa e estranha Órbita (ou "Orta", para um dos simpáticos taxistas) e ainda o impraticável Armazém, superlotado e mal freqüentado, que nos deu a exata sensação de que não devíamos mesmo ter entrado ali.
Mas foi em Jericoacoara que percebi, de fato, a razão da viagem.
E o Brasil que tinha dentro de mim mudou para sempre.
Nesse lugar que a imensidão escolheu para morar, dourar-se ao sol, enterrar-se na areia sempre mutante das dunas e banhar-se demoradamente no mais azul dos mares ou nas lagoas mais recônditas, nesse lugar onde Deus inventou a felicidade, foi que me encontrei comigo inteira, avesso, direito, bordas, bolsos escondidos, fundos falsos, armadilhas destravadas. Só em Jeri é possível despir os medos, lavá-los e secá-los ao vento e ao sol, estendê-los na longa faixa de areia até que, bem esticadinhos, revelem-se sem armas.
Na luz da areia branca e das águas transparentes, compreendi meus últimos meses, teci um novo sentir, livrei-me das tralhas usadas e acumuladas na alma, esvaziei-me de prejulgamentos, mágoas, tristezas e restos. Renovei o estoque de esperança, abri as comportas, deixei dores, encontrei sorrisos, soltei o corpo com leveza e, pela primeira vez em muito tempo, dormi, indefesa e feliz, o sono da serenidade.
Em Tatajuba contemplei a humana pequenez diante do imenso ao meu redor, saboreei peixe e camarão como se estivesse na Santa Ceia, sentei-me numa providencial rede a balançar na água, senti os pés na areia molhada. Na Pedra Furada quebrei um dedinho, sim, mas o que é um dedinho diante de Jericoacoara e sua grandeza? Subi a duna mas o pôr-do-sol não apareceu, coitado, após brigar com a nebulosidade; ao descer, parei embevecida numa roda de capoeira cercada de turistas desconcertados, a filmar e fotografar freneticamente. Vai pôr na cabeça de um romeno, eslavo, finlandês, sei lá o que mais, a essência de um ser capoeirista??...
E no embalo do berimbau fui guardando com carinho as lembranças mais doces para usar depois - agora, por exemplo, quando apesar da distância física a imensidão se instala e Jericoacoara cura-me pra sempre de tudo o que der e vier.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Filmes, filmes para uma cidade

É fácil dizer que Tiradentes, em Minas Gerais, é tão bonita que daria um filme. A exuberância e o calor desse cenário a céu aberto, talhado na pedra lascada que sobe ladeiras atrás de ladeiras, emoldurado pelo conjunto colonial recortado em branco e tons naturais contra uma imponente e protetora Serra de São José, são de fato para sonhar e eternizar.
Mas Tiradentes não é cidade de um filme só. Mesmo não tendo um cinema sequer. Quando chega janeiro - e isso já há dez anos - todos os filmes são para ela, rainha escolhida a dedo para sediar a Mostra de Cinema de Tiradentes, uma espécie de paraíso democrático do filme nacional, seja ele longa, curta ou vídeoarte, e do livre debate sobre tudo aqulo que realmente interessa, quando o assunto é cinema.
São dez dias descompassados, quando o coração escorrega mil vezes pelas ladeiras, entre o Centro Cultural Yves Alves, onde se acende o debate, o Cine-Tenda - um enorme e irresistível escurinho que remete aos cinemões que alimentavam a infância da gente, e onde se exibe a maior parte dos filmes - e o Cine-Praça, que faz a alegria do povo sempre que as chuvas o permitem. Isso sem falar nas inúmeras oficinas que se multiplicam atrás de portas fechadas, inconfidentes, delirantes - e muito, muito profissionais.
Livre e colorida, descompromissada com sucessos pontuais e entregue à sua vastidão e diversidade, a Mostra é uma festa. E para combinar com a mineirice do cenário, sempre começa e termina com um cortejo - nada menos que o célebre bloco, para quem é de carnaval - cheio de paixão, fantasias, bandinha, malabaristas, perna-de-pau, bonecos cheirando a Olinda e muita, muita batucada para fazer tremerem as pedras da história.
No recheio, a qualidade absoluta da programação, o compromisso em democratizar a produção do ano - todos podem ter tudo de graça - e a profundidade com que se discute cinema o tempo inteiro, num ambiente de grande transparência. Onde a estrela verdadeira, aquela que brilha todas as noites sobre as nossas cabeças, faça chuva ou céu estrelado, é o vigor com que o cinema brasileiro se impõe, cada vez mais, pela qualidade das produções e pelo talento energético de seus realizadores.

Esparsas

Uma vida e seus ecos

Uns dias depois do meu último post, estava a navegar por razões literárias por respostas, comentários e notas de pessoas que ainda não conhecia. Caminhei em meio a essas impressões porque me interessavam vivamente, e assim fui desvendando vidas devagar... Soube de tantos detalhes que não imaginava, aprendi imenso sobre sentimentos profundos que poderiam ser meus, ou com os quais me identifiquei no trajeto... Sem querer, conheci dores, momentos de luto, tristezas debulhadas com carinho e saudade. E por essa razão acabei entrando, respeitosamente, no blog de alguém que tinha acabado de falecer.
Havia ali muita vida, sonhos ainda quentes, esperanças escapadas de sorrisos talvez amarelos, mas guerreiros. E determinação também, bom-humor, talento. Visitei alguém que podia ter conhecido, de quem poderia ter gostado, com quem decerto teria trocado muito... Por instantes, ao percorrer as últimas páginas ali deixadas com a naturalidade de quem tem a certeza de que vai continuar amanhã, pressenti que sua autora era uma dessas pessoas acostumadas à eternidade. Parecia esbanjar vitalidade em cada palavra, com aquele jeito simples e especial que caracteriza as pessoas realmente espontâneas. E me senti bem-vinda, acolhida, como se merecesse de fato entrar, ainda que de leve, naquele mundo. O mundo de alguém que passou, mas mesmo assim permaneceu, espalhando luz à sua volta.
Agradeço aqui ao Milton e ao Paulo, mesmo sem os conhecer, por me terem guiado ao delicado universo de sua querida Meg, autora do blog Sub-Rosa, a quem presto minha homenagem.