domingo, janeiro 14, 2007

Milton, Chico e Ney

A vida volta, às vezes.
E volta cheia de gás, sem nostalgia, com gosto de agora.
Nesses tempos recentes, muita coisa guardada vem se reinstalando em mim de um jeito bom, cheiroso, de memória que refresca a pele.
A música, principalmente... mas a música da vida, aquela que jamais se separa de todo da gente.
Dezembro e janeiro me trouxeram, de uma só enfiada, Milton Nascimento, Chico Buarque e Ney Matogrosso. Ao vivo e a cores, para acender muita coisa costurada à bainha da minha alma desde muito sempre.

Primeiro foi Milton, com seu vigor contagiante, o timbre impossivelmente belo, todas aquelas canções claras feito água de rio, rio vereda de Minas, a Minas que morou dentro de toda uma geração, aliás várias gerações, por obra e graça do menino de Três Pontas e todo o seu clube da esquina.
Ouvir e ver o Milton, só e acompanhado, é um pouco como a letra de uma das canções do último disco: "Será que isto quer dizer amor, estrada de fazer o sonho acontecer?"
Felicidade suprema foi receber, de presente, A lua girou - e o convite para fazer corinho, toda uma platéia respeitosa e apaixonada a cantar, muito afinada, "Hãã... hãã... hãããera... hãã... hãã... hãããera", um colchão sonoro para as sublimes improvisações que só Milton Nascimento sabe fazer, com sua voz de cristal de rocha, da melhor pedra que há nas nascentes das Gerais.

O segundo foi Chico, nosso irmão, nosso filho, nosso pai, amante e amado. Chico dos olhos inocentes e de todos os pecados e sonhos marcados na pele feito tatuagens, só pra nos dar coragem pra seguir viagem quando a noite parece não acabar... Chico, ombro a ombro nos anos de medo, desespero e amor... Chico feminino plural... Chico, encanto que de repente acorda e ressurge no palco, sempre mais belo e do mesmo jeitinho de menino que arriscou ver a banda passar e levou o Brasil com ele.
O homem, poeta e fotógrafo do seu tempo vem novo de coração e de canções, sem faltarem aquelas que a gente jamais esquece e sempre há de reconhecer, afinal, quem canta comigo canta o meu refrão...
Entre as novas, as médias e as antigas, Chico e seu violão nos devolveram a certeza de que, afinal, demos pra alguma coisa, escrevemos com ele parte da história, só por ouvi-lo e ecoá-lo por toda parte, amanhã há de ser outro dia, meu Deus, vem olhar, vem ver de perto essa cidade a cantar...
Quem te viu e ouviu um dia amou-te à primeira estrofe, atravessou o bosque que um muro alto proibia e seguiu contigo; quem te vê e te ouve agora recolhe na alma a poesia que deixas no chão, olha bem fundo nos olhos verdes das canções e, rendido, abre os braços pra você.

E o que dizer do terceiro? Ney Matogrosso, cálido e forte, é um vento de tempestade e, ao mesmo tempo, um acorde singelo a ecoar na noite. Quase acústico, escolheu cantar acompanhado por violões, guitarra, viola, violão de sete cordas, alaúde. E foi replantando, podando e enxertando as canções mais contundentes e também as delicadas, até produzir emoção pura. O Ney que está no palco cercado de cordas é um mestre das artesanias vocais e expressivas. Estão lá os mesmos olhos penetrantes que mesmerizam, cortam, ferem e amam. Estão lá o bom-humor, a pitada de malícia, a brejeirice - e também dor, sentimento, indignação. Ney é um ator a serviço das canções, um artífice da mais pura simplicidade no ato de cantar.
Nesse quase concerto, a surpresa é a pequena mas precisa seleção do repertório dos Secos & Molhados, ao final: Sangue Latino, Rosa de Hiroxima, Fala. E Ney fala, sim, com a voz e autoridade de quem fugiu de limites sem jamais ultrapassar os meridianos do bom-gosto. Fala com o corpo, os sentidos, melodia e palavras. E faz voltar e seguir o tempo, ora sambista, ora bandoleiro, ora amendoim torradinho... mas sempre, sempre Ney. Como só ele sabe ser, sentir e se fazer sentir.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Independentes

I
Selvagens o tempo
e os arrepios de medo
- hora de guardar-se.

II
Jogar, ora bolas
pernas compridas e poucas
pra tanta sede de gols...

III
Faceiríssima, nua,
o amar armado no espelho
- e a alma, encolhida.

IV
Esse funk pra todo lado
e o coração, surdo-mudo,
põe o leite pra esquentar.

V
Portugal cá dentro
canção pra lá dos olhos
E onde estás, tu, mamá?*


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* (Estrofe da Canção de Lisboa, de Jorge Palma,
mestre da música e da alma portuguesas)

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Saudade boa, ou "tudo fácil, nada perto"

Neste momento, 01:48 da manhã, ouço extasiada o terceiro ato da ópera I Puritani, de Vincenzo Bellini, transmitida ao vivo do Metropolitan Opera, em Nova York. Solistas, a revelação Anna Netrebko, o tenor Eric Cutler e o barítono Franco Vassallo. Um amigo me avisou a tempo de poder ouvir quase a ópera inteira, um raro prazer em linha direta.

Enquanto ouço, penso na maravilha que é a instantaneidade da tecnologia. Num instante deixo minha cadeira de trabalho e estou na platéia do Met, com toda a energia e carga emocional que uma ópera como esta traz consigo e distribui, generosamente, aos aficionados.

Tecnologia... Pode ser acolhedor ver chegar um email quentinho, saído do forno da alma, com carinhos vivos de alguém - boas palavras, amenidades, poemas, doçuras. É bom clicar ou receber um clic no msn, falar com alguém léguas e mares distante. É bom ter o Skype e conversar como se fosse de bem perto. A tecnologia é capaz de, a todo momento, fazer suas mágicas, colorir o dia, abraçar a alma.

Penso em como tudo isso é fácil... o difícil, mesmo, é o ser humano.

Aqui sentada a escrever meu blog, sinto falta de ti e tuas graças. Do modo como chegaste sem jeito, do nada, e abriste caminho para alegrar-me. E de como nos entendemos com verdade e poesia, com uma naturalidade mansa, mas absoluta.

A tecnologia abrigou um texto meu, escrito com a máxima paixão, e levou-te a ele. E assim vieste, sem mais cerimônia, a sorrir timidamente no email. Minha alma distraída, leve-solta no ciberespaço, recebeu-te com alegria leve, fraterna.

Sabias falar comigo, fazer-me rir, poetar, sonhar. Parecias sempre chegar para o chá com biscoitos finos, um pouco de geléia a lambuzar poemas, sorrisos, palavras vivas, histórias contadas com brilho nos olhos que eu ainda não via. Convidavas-me a passear pelo teu dia-a-dia, eu ia de carruagem, às vezes com asas emprestadas. E divertia-me sempre.

Fomos criando costume, cumplicidades... e ficando necessários um ao outro. Eu te esperava, e tu a mim, para trocar poetas e suas estrofes, construir lembranças, inventar verdades. O oceano e o fuso horário que nos separavam tornaram-se irrelevantes para tanto assunto, tanto gozo de estar juntos.

Os sonhos, bem alimentados, engordavam a olhos vistos (ou quase). Um dia disseste que ias atravessar o mar... e então pusemo-nos a desejar o encontro dos olhos e das mãos e das pequenas felicidades. Esforçamo-nos para isto online e offline: email, msn, telefonemas do ultramar... tudo contribuiu para que afinal, pudéssemos estar juntos.

Mesmo no continente, ainda faltavam uns três mil quilômetros. Preparei-me para ti desde muito longe e bem dentro, e tu para mim. E conseguimos, sim, conseguimos... tudo parecia conspirar para que a alegria ao vivo fosse a mesma das cartas, juras e sonhos anunciados.

Gostamo-nos. Amamo-nos. Houve verdade e ardor, pânico e dúvidas. Recuos, ansiedades, desconforto misturado ao carinho e à leveza de ser juntos, simplesmente, diante do mar e de nós mesmos.

Voltamos à distância física, mas lá estava o email a amenizar tudo, a rechear incertezas com poemas e beijos. E, mesmo com o passo inseguro, permanecíamos cúmplices em muitas coisas. Era um prazer duelar sobre bobagens da gramática, trocar apelidos, falar de tudo aquilo que gostávamos.

No seio de algum desvario, arrefeceste. Divergimos, amuei-me, foram menos emails, tu com mais compromissos, a interessar-se por coisas que eu não via, mas estranhamente pressentia. Nossa fina sintonia apontava interferências, e nem a eficiência das redes sem fio conseguia saná-las.

Até que pousaste em outras asas, para desgosto das minhas, que se equipavam para voar rumo ao que ficou do encontro, curar saudades, rechear ternuras. E olha que se não fosse a tecnologia eu nem ficava sabendo...

E vieram as dores normais, bem humanas, de uma despedida conturbada demais e mesmo imerecida, diante do belo que por tanto tempo soubemos cultivar. Vieram a raiva e as palavras não medidas, os machucados na alma. A tecnologia entrou para dar mais intensidade à dor e deletar o registro amoroso, datado e preciso, cuidadosamente organizado para perdurar.

Mas não quiseste ir de todo, apesar da primeira maré de fúria. No msn teimavas em ficar, eu me horrorizava, resisti, excluí, bloqueei - e tu a insistir, a pedir passagem para talvez uma palavra que ficou sem ser dita, um detalhe importante que escapou... Ao terceiro dia, capitulei e deixei-te entrar, não sem medo ou até uma certa mágoa. Que o tempo, mesmo ainda curto, encarregou-se de lavar.

Agora, às vezes, nossos nomes se encontram. No início até se estranhavam, entravas, saías, sumias, voltavas, tudo em questão de segundos. E eu pensava em como era bom quando conversávamos, felizes por estar um com o outro, ainda que apenas por um texto digitado, um poema captado, um beijo no ar. Espero que fales, não falas. Revelamos nossas músicas, arrisco um poema. Vira e mexe, voltas. Vejo-te, tu me vês. Nada ou tudo se diz em silêncio. E voltas a sair, eu também saio.

Na saudade de conversar, não é o amor que volta. Fica o carinho a bailar, o toque de sensibilidade que nos uniu nos livros, nas canções que nos vieram ao encontro na estrada, nos poetas que emprestamos um ao outro, nos marcadores deixados na alma.

Quando vejo teu nome, nossas palavras fazem barulho dentro de mim, como a querer soltar-se e cirandar de novo ao vento, a pular, desabridas e de mãos dadas, as janelas que acabamos por deixar entreabertas...

sexta-feira, janeiro 05, 2007

Nas pétalas de um poema roubado, devolvido e compartilhado

Gosto de Cora Rónai.

Não me peçam explicações: gosto, pronto.

Não é só porque sempre admirei seu pai, Paulo Rónai, respeitadíssimo tradutor e pessoa das mais queridas no meio intelectual de sua geração.
Nem apenas porque Drummond sempre me falava bem dela, "eu vi essa menina crescer, ela é muito inteligente...".
E nem só pelas belezas que escreve.

O meu gostar tem um pouco de tudo isso e também alguns dos ingredientes que deixa escapar pelas vírgulas, reticências, exclamações: temperos simples do coração, receitas de família, guardados de gaveta recendendo a perfume com naftalina, sabores de infância... são muitas coisas. Assim que a encontro sempre com muito prazer na coluna do jornal e no blog também.

Mas essa semana Cora foi demasiado fundo, e com tanta transparência e leveza que quase não percebia chegarem-me as lágrimas com tanta força, ao vê-la contar (sim, vê-la, porque Cora se vê no papel) a história do poema roubado à chácara da sua infância.

Ocorre que Paulo Rónai e sua mulher resolveram decorar jardins, quintais, pomares e tudo que de verde havia com, imaginem, poesia pintada em doces tabuletas! Paulo escolhia, Nora pintava, e as tabuletas-poema proliferavam no caminho do verde, a iluminar o espaço da natureza. Tesouros que, como nos conta Cora, o tempo e os humores da floresta encarregaram-se de dissolver.

Mas um deles voltou, e com as próprias pernas que o levaram, mais de 20 anos atrás.

A deliciosa crônica de Cora Rónai revela os detalhes desse insólito retorno com as melhores tonalidades da alma. A bem do melhor entendimento, peço-lhe vênia para resumir: um menino que por ali andava achou "tão bonita" a tabuleta com um poema de Cecília Meirelles, dedicado aos donos da casa, que a levou consigo... e guardou-a muito bem, creio que com respeito e carinho até, pois permaneceu intacta. Para devolver, envolveu-a num saco de lixo preto e anexou um tímido e maltraçado bilhete, no qual revela que, já homem, converteu-se a Jesus e achou mais certo devolver.

A foto que ilustra a crônica mostra a tabuleta restituída soberbamente à paisagem, decorando uma casinha de pássaros ou pombos, talvez. Veio-me forte a emoção ao percorrer a pintura do poema, feita pela mãe de Cora com a delicadeza própria do amor, com reverência e provavelmente um enorme carinho pelo inestimável presente da comadre Cecília (sim, Cora revela também ser sua afilhada). Delicadas folhas de hera formam uma guirlanda a circundar uma parede imaginária que antecipa os sinais do tempo no reboco descascado, um ar de permanência, perenidade...

Um poema assim só podia mesmo voltar para casa. Cora diz que teve vontade de abraçar o homem que o devolveu, e fala da esperança que há num mundo em que meninos roubam poemas e homens honestos os devolvem.

Penso que tem mais razão do que imagina. A esperança foi plantada quando alguém percebeu que as vozes da natureza recitariam poemas, se estes estivessem bem à mão para serem recebidos na alma. Foi multiplicada entre as crianças que cresceram na convivência natural com aquelas tabuletas sussurrantes. O vento por certo acompanhava, no contrabaixo do seu ir-e-vir, as vozes das dríades que entoavam Bandeira, Cecília, Drummond e quem mais ali estivesse. Se a chuva levou alguns, é porque foram enfeitar outro lugar... como esse da Cecília, que acabou por parar nas mãos ávidas de beleza de um menino que, afinal, deu pra alguma coisa, aprendeu sem saber com as rimas, até entender um dia que não devia ficar com algo que não lhe pertencia. Contudo, se o poema o chamou um dia, é porque talvez, de algum modo, lhe pertencesse sim... é o quinhão de esperança que lhe marcou por dentro, que lhe foi doado por obra e graça do amor que nasceu do que foi ali plantado.

E que bateu em mim. Porque eu senti, Cora, o cheiro do verde das folhas a emoldurar as palavras. Arderam-me os olhos, a alma alvoroçou-se, e eu fiquei feliz por viver num tempo em que tais histórias acontecem aos seres humanos de delicado coração.

segunda-feira, janeiro 01, 2007

No ano novo, Drummond de presente


Drummond, o nosso Carlos Drummond de Andrade, como sempre mineiramente preciso, ensinou-nos duma vez por todas o que é preciso para receber de braços bem abertos cada ano que chega, como este 2007. Lembrá-lo nas asas da esperança é um presente com cara de esperança boa, esperança de que possamos mudar o nosso país e o nosso futuro, com vontade e energia, contra essa maré de urucubaca que insiste em nos tirar do sério.
Pra todos nós, a receita do poeta maior para o ano novo.

Receita de Ano Novo
Carlos Drummond de Andrade

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.


Texto extraído do "Jornal do Brasil", Dezembro/1997.