domingo, setembro 25, 2005

Curtas de domingo

Apolônio de Carvalho

No momento da despedida, emocionam as lembranças do velho comunista, um dos poucos heróis sinceros cuja memória podemos evocar sem medo de errar. Alguém que lutou pela justiça acima de tudo, acima até mesmo da própria nacionalidade. E que acreditou, com vontade, até o fim. História feita apenas de beleza, verdade e um amor muito grande. Gostaria de tê-lo conhecido além das páginas da história, mas de todo modo reverencio sua memória com a gratidão de ter, como brasileira, um exemplo de coerência a respeitar.

As histórias de seu desassombro e ternura, seu eterno romance com a francesa Renée, que o seguiu ao Brasil para a vida inteira, o carinho dos dois filhos, que souberam seguir-lhe o exemplo, a reverência de um país inteiro nos instantes finais - discreta e profunda como foi a sua vida - nos mostram que dar a vida pelo sonho e pela fé nos homens, como ele, valeram (e muito!) a pena.

Estrada de terra para o Oscar

"O Quatrilho" é um excelente filme sob todos os aspectos. "Central do Brasil" é um dos grandes filmes brasileiros de todos os tempos.
Ambos concorreram ao Oscar. Ambos perderam para filmes menos talentosos.
"Dois filhos de Francisco" é um bom filme, mas sobretudo uma das maiores bilheterias do cinema nacional. Só isso já diz algo sobre ele - que, apesar do sucesso e do marketing pesado, em nenhum aspecto se compara, de longe sequer, aos dois filmes citados acima.
E foi escolhido por uma comissão para representar o Brasil na corrida dos filmes estrangeiros por uma vaga no Oscar.
Agora, é esperar para ver qual a matéria que pavimenta a estrada para a Academia: os lucros, um regionalismo que pode passar por exótico ou a qualidade das produções. Se for uma das duas primeiras, pode ser que passe.
O cinema brasileiro já esteve melhor na foto, quer dizer, na película...

"Arigó", do Rio à Índia

Cinema de animação feito no Brasil, por brasileiros, e com tempero de novos talentos revelados é uma raridade nesses tempos de mídia. Pois este é o caso do curta "Arigó", produção de sete minutos realizado pela Usina de Cinema do FanCine, organização não-governamental fundada em Volta Redonda.
"Arigó" é o nome de uma ave de arribação bem brasileira. É também o apelido, entre carinhoso e pejorativo, dado aos peões de trecho que construíram a CSN, em Volta Redonda, em plena Segunda Guerra. Daí o nome do curta, escolhido por unanimidade pelo próprio time de criadores.
O projeto foi resultado de uma grande parceria que envolveu o Fundo Nacional de Cultura, a Coordenadoria de Educação do Médio Paraíba 2, o FanCine e a prefeitura da cidade. Além do filme, um estudo cartográfico e antropológico amarra as origens de Volta Redonda aos fatos mais marcantes de sua história. Tudo na produção foi obra e graça dos jovens artistas, assistidos por um time de profissionais da pesada.
Essa história toda saiu da cabeça e do coração de Fatita Celes, cinéfila e curadora de festivais internacionais, que fundou o FanCine para pôr uma câmera na mão de gente talentosa.
"Arigó" será exibido no Festival do Rio no dia 30 de setembro, com direito a debate com a turma de realizadores. Em novembro, brilha no 14º Festival Internacional de Filmes Infanto-Juvenis, em Hyderabad, na Índia. A coroação perfeita para um vôo de sucesso que passou pela 8ª Mostra de Cinema de Tiradentes, a competitiva do CINE PE 2005 (Festival de Audiovisual de Pernambuco), o Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte e a Mostra Infanto-juvenil de Florianópolis, só para citar os convites deste ano.
"Arigó" é um santo de casa que, sem mídia ou ações mirabolantes de marketing, está fazendo milagres importantes por aí.
Atenção, pessoal da animação: fiquem de olho em Volta Redonda. Lá tem gente aprontando com a maior qualidade!

sábado, setembro 24, 2005

Impunidade sempre em alta

Já não basta a constante vergonha que nos assalta todos os dias, ao abrir os jornais e acompanhar todos os absurdos vai-não-vai e toma-lá-dá-cá da crise política, sem nada - ou quase nada, à exceção da recente malufada enjaulada - de conclusivo acontecer na prática.

Alguém viu alguém devolver dinheiro aos cofres públicos deste país? Viu? Onde??? (Sem dúvida estou tendo hoje o meu dia de Graúna).

Pois agora isso é pouco. Ainda temos de assistir a vergonhas muito maiores. A primeira página do Globo de hoje - coluna mínima, mas vá lá, é primeira página - informa que o Supremo Tribunal Federal, por meio de habeas-corpus, acaba de colocar em liberdade um assassino condenado a 228 anos de prisão: o coronel Mário Pantoja, responsável pelo massacre de 19 pessoas, entre agricultores e familiares, em Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996. É, e com direito a despacho veemente do ministro Cézar Peluso, que concedeu ao réu o privilégio de "recorrer em liberdade".

Uma de minhas grandes frustrações com Fernando Henrique Cardoso, intelectual e teórico, ídolo das médias-esquerdas da minha geração, sempre foi a sua incapacidade de agir com firmeza e responder com energia às grandes crises nacionais, durante o seu governo. Uma delas, para mim a mais emblemática, foi o massacre dos sem-terra em Eldorado dos Carajás. Enquanto todo o país assistia, atônito, às barbaridades cometidas pelos policiais comandados pelo dito coronel Mário Pantoja, o presidente balbuciava desculpas em cadeia nacional. Nem sequer o governador do Pará foi afastado, que dirá o alto comando da barbárie.

Na página 13, a matéria - que engordou para duas colunas, ainda que imprensada entre manchetes sobre o referendo do desarmamento e o resultado da dupla sena - cita trechos do despacho do ministro. "A garantia constitucional não tolera execução de sentença condenatória, em qualquer de suas eficácias, antes do trânsito em julgado (ou seja, quando se esgotam todas as possibilidade de recurso." Tal rigor com os direitos de um cidadão, ainda mais um assassino condenado, não só me espanta como me faz lembrar o caso da jovem mulher que foi presa em São Paulo por tentar - notem bem, tentar - roubar um shampoo e um condicionador em uma farmácia e, mesmo sem ser julgada, passou um ano e sete meses na cadeia e perdeu até uma vista em função de torturas. E só saiu por causa da determinação de uma advogada diante do absurdo da situação, que batalhou até conseguir que um promotor de justiça se compadecesse da pobre. Mas o ministro Cézar Peluso, cujo salário é pago com o dinheiro do contribuinte brasileiro, vai mais além em seu despacho: "Não há maneira de o sistema jurídico reparar a privação da liberdade sequer mediante o expediente sub-rogatório de indenização (que, aliás, não se sabe quando é paga)."

Ou seja: um assassino, responsável pela morte de 19 pessoas inocentes, inclusive crianças, tem o direito de recorrer da sentença em liberdade e merece ser "reparado" pelo tempo que passou na prisão até agora. É isso mesmo ou será que eu entendi mal?

Quem indenizará a jovem que perdeu a visão de um olho e mais um ano e sete meses de sua vida na prisão, sem julgamento, por tentar roubar produtos de beleza numa farmácia?

Que indenização, por maior que seja, poderá amenizar a dor dos que perderam seus parentes no massacre de Eldorado dos Carajás?

Que indenização poderá restituir à alma brasileira a confiança na Justiça, se o maior órgão do nosso judiciário, o Supremo Tribunal Federal, age com tamanha condescendência para com assassinos condenados?

Não podemos esquecer, não devemos esquecer o que vimos - eu e todo o Brasil - acontecer em Eldorado dos Carajás. Nossa Justiça deveria defender e proteger a população, independentemente de cor, raça ou classe social. É isso o que diz a nossa Constituição, que todos juramos honrar. E é isso o que o ministro Cézar Peluso acaba de ignorar, quando concede habeas-corpus a um assassino condenado.

É o mesmo que rir na cara de todas as vidas humanas perdidas no massacre, rir na cara da dor dos parentes, rir na cara de todos os brasileiros que desejam banir, de uma vez por todas, a impunidade crônica que inibe o crescimento da nossa dignidade e cidadania.

Quando o Judiciário chega a este ponto, ao mesmo tempo em que o Executivo e o Legislativo se envolvem num dos maiores imbroglios da nossa história recente, dá muita vontade de sair gritando por aí. Como é que nós, a sociedade atônita, vamos dar conta de restituir ao nosso país o direito de existir, funcionar, legislar, educar, sonhar?

quarta-feira, setembro 21, 2005

Esses jovens tresloucados e talentosos

Da primeira fila da platéia me vem um flashback paralelo: vejo-me há mais de vinte anos, num tímido teatro de um colégio na Tijuca, assistindo a uma montagem de "O despertar da primavera", encenada por um grupo de jovens cheios de garra e vontade: Maria Padilha, Fábio Junqueira, Daniel Dantas, Miguel Fallabela, Paulo Reis... Neste mesmo momento em que na cabeça rola o vídeo-tape daquela galera que deu certo de verdade, olho para o palco onde Carolina Portes, Fabricio Belsoff e Keli Freitas desenrolam, com graça e competência, sua versão fulminante de "Esses anos estúpidos e perigosos", do canadense George F. Walker, e sinto a mesma coisa: um perfume de futuro bom.
"Esses anos...", que no original atende pelo contundente nome de "Tough!", ou seja, dureza, é barra, é f..., é uma história simples de adolescência. Simples? Claro, pra quem nunca passou, ou já passou mas esqueceu, ou viu acontecer com o filho do vizinho. Mas nunca para os protagonistas, ou seja, os adolescentes metidos em confusões que envolvem sentimento, presente confuso e futuro em pânico. O texto é ágil, fotográfico e muito teatral. Funciona como uma luva na montagem agressiva e de uma velocidade quase digital, com marcações despojadas, práticas e que evoluem muito bem em cena. A composição de cenários, figurinos e uma iluminação contida, mas eficaz, é importante para construir o clima, apoiado por uma ótima trilha sonora.
Mas o que seria de tudo isso sem os atores, claro, os rostinhos iniciantes, mas flamejantes, que transformam boca de cena em mágica e poesia? Fabricio Belsoff é perfeito como o confuso jovem que se alterna entre o carinho pela namorada, a vontade de viver outras aventuras e a súbita notícia de que ela espera um filho seu; Keli Freitas, a namorada, é a própria fragilidade em cena e, no segundo seguinte, a imagem da determinação; e Carolina Portes, a melhor amiga, dona de um humor de nuances quase sombrias, alterna com extrema habilidade o seu radicalismo entre a fidelidade absoluta à amiga e o ódio à raça dos homens, concentrado no namorado da outra, a seu ver pivô de todos os infortúnios.
Todos expressam bem a profusão de sentimentos que assolam a alma adolescente, todos ao mesmo tempo: hormônios demais, carências demais, questões demais - e sérias! - a decidir toda hora. É como viver a vida toda num instante, várias vezes por dia. E os três atores parecem talhados para a história: conseguem ser dramáticos e engraçados, crianças e adultos, frágeis e extremos, bobos e profundos - e, o que é melhor: fazem bem o trânsito entre todas essas emoções sem cair no pastiche ou no melodrama. Pesa aí, sem dúvida, ao lado do talento do trio, a eficiente direção de João Fonseca. A tradução tem lá seus pecadilhos, sobretudo no abuso de expressões que simplesmente não são faladas no português e, ao pé da letra, soam falsas; mas nada que comprometa o ritmo geral do texto como pilar da história. Sim, porque há textos que atrapalham o impacto visual do espetáculo. Em "Esses anos...", de modo algum é este o caso; o texto se beneficia do contexto estético e um reforça o outro.
Em nenhum momento o espetáculo de uma hora dá sinais de cansaço, tédio ou desfalecimento; o ritmo é intenso e a interação dos atores, total. Os pequeníssimos detalhes que, vez ou outra, parecem que vão prejudicar, não chegam a fazer barulho. E o resultado é algo verdadeiro, transparente e simples, com cara de adolescente que dá exemplo pros adultos.
Exatamente como aqueles "meninos" que, ainda ontem, depositavam todas as suas fichas no despertar de uma primavera que de fato aconteceu pra eles, como espero que aconteça também para Carolina, Fabricio e Keli.

quarta-feira, setembro 14, 2005

Uma história de gente

Vou falar de alguém que conheço pouco, pouco ou quase nada além das crônicas de jornal, algumas paixões declaradas - como árvores centenárias, tecnologia, capivaras, frangos d'água - e referências muito carinhosas do Drummond, grande amigo de seu pai, que a viu crescer.

Vou falar de Cora Rónai, com especial emoção após ter visitado seu blog e visto a série de fotos de viagem que vem publicando, com comentários às vezes telegráficos mas sempre poéticos, marcados pelo bom-humor e lembranças.

Em Budapeste, Cora visitou o prédio onde seu pai viveu toda a infância e onde seu avô tinha uma livraria. E tocou de passagem, como o leve farfalhar de uma pena, em dores guardadas na memória atávica de sua família, no horror da Segunda Guerra. Não posso estar na sua pele para imaginar o que ela sentiu ao percorrer o hall de entrada e as belas escadarias e imaginar, como ela mesma diz, como deve ter sido difícil abandonar aquilo tudo de repente e mergulhar no desconhecido. Sem falar nas perdas, é claro, pois seu pai nunca mais tornou a ver os avós, o próprio pai e mais dois irmãos.

Fiquei pensando nessas tristezas, às quais ando particularmente sensível ultimamente. A viagem no tempo de Cora me vez recordar a recente leitura de Ver:Amor, romance de David Grossman publicado no Brasil em 1993, que encontrei entre os saldos da Livraria da Travessa e cujo tema é o holocausto, mas a partir da visão de alguém que não o viveu - e tenta o tempo todo captar, nas pessoas que passaram por aquilo, o sentimento da tragédia.

É uma homenagem desesperada, profunda imersão na reconstrução da alma de quem precisa, acima de tudo, conviver com as marcas e mesmo assim não se tornar vítima, transcender, transformar a vida. E está cheio de histórias belas, fortes, comuns e trágicas como a da família Rónai. O texto, de uma doçura enorme, faz uma ponte para que se possa compartilhar sentimentos com aqueles personagens que, de tão reais, poderiam até morar dentro da gente. Uma onda de solidariedade, sei lá, compaixão, igualdade ou seja lá o que for, me acometeu desde então. Ao contemplar aquelas escadas atravessadas pelo tempo, não pude deixar de imaginar os seis filhos do casal de livreiros (os avós de Cora) correndo pra cima e pra baixo entre o mundo dos livros, o mundo da casa e a rua, com seus sonhos, esperanças e a vida pela frente, sem pressentir o perigo ou adivinhar as sentenças que viriam.

Diante dessas e de outras tragédias, como as tantas que se avolumam no momento presente em todo o mundo, me vem à tona com força um alerta interior para o compromisso que sempre precisamos ter com o futuro da humanidade. É preciso lembrar e relembrar, em atos e convicções, o quão desesperadamente todos nós, humanos, precisamos de paz.

Paz para salvar a gente comum das nossas favelas e das ruas, da faixa de Gaza, de Bagdá e de cada Brasil dentro desse nosso país. Paz para salvar a humanidade dela mesma. Paz como resistência, como uniforme do nosso coração.

Gostaria que houvesse escadarias, como a da família Rónai, por onde pudéssemos subir, cada dia um degrau, e chegar à paz palpável, simples e comum, que a gente tanto precisa.

domingo, setembro 11, 2005

Jóia rara e, agora, vazia

Há duas décadas, Caetano acreditava que, se o deixassem cantar, o mundo ficaria "odara", tudo seria "jóia rara". Nesse interlúdio entre tempos mais românticos e cultura - como pão espiritual de cada dia - mais disponível, natural e profusa, nove cinemas naufragaram em Copacabana, nas águas do irracionalismo ditado por produtos de consumo com pretensões de equivaler à sala escura e, muito provavelmente, da violência que nos rouba, dia a dia, o direito de curtir apaixonadamente a nossa cidade.

O Jóia - peça de resistência encastelada no antigo shopping da Av. Copacabana 680 - acaba de fechar. Aliás, fechou na última quinta-feira, como atesta o Globo de hoje. Cineminha maldito, pequeno, escondido, muitas vezes quente, com eventuais problemas técnicos e alvo de reclamações freqüentes, sem dúvida. Mas foi lá que fui apresentada, em êxtase, à Flauta Mágica de Ingmar Bergman. Foi lá que vi o notável brasileiro Os Mucker, hoje um tanto esquecido. E foi também lá que, mais recentemente, derramei-me diante do dolorido Dançando no Escuro, de Lars von Trier.

Sim, o Jóia era raro, especial. Endereço velho conhecido dos ratos de cinema, todo mundo sabia que podia assistir lá aos filmes cult em fim de carreira, na repescagem. Raramente tinha fila e era um dos preferidos dos idosos das adjacências, por ser perto de tudo, de fácil acesso e com escada rolante. Jóia rara que fez história na vida da cidade e do bairro.

A nota do jornal não me deixa esquecer que o Roxy, hoje, é o único cinema de Copacabana. Parei para pensar e contar os mortos: Cinema 1, paraíso no qual navegamos, eu e minha geração, pelo melhor do cinema europeu de autor; o Ricamar, que pelo menos virou a Sala Baden Powell e se manteve como espaço de cultura; o Metro Copacabana, que ficava pertinho da C & A, na Nossa Senhora do Mesmo Nome; o Art Copacabana, em frente à Dias da Rocha, transformado em triste academia de ginástica para os modernos de plantão, o que me fez odiar para todo o sempre a marca BODY TECH, que perpetrou o crime; o Rian, majestoso em sua bela arquitetura na Avenida Atlântica, ao qual eu chegava fácil, fácil, de 119 - ônibus que eu pegava na São Clemente, cruzava o Túnel Velho e saía na Santa Clara, depois pegava a Constante Ramos e ia até a praia; o Cinema 3, na Raul Pompéia; e o Caruso, inesquecível em suas poltronas de couro vermelho, aclamadas como as mais confortáveis da cidade.

Tinha ainda o Bruni Copacabana, aquele cineminha um tanto acanhado, com ar de abandono, no fundo de uma galeria na Barata Ribeiro, quase Santa Clara, e que foi engolido pela recente expansão da Modern Sound, a melhor loja de CDs e DVDs da cidade. Lembro que ali assisti "A estranha família de Antonia", o filme que derrotou o belo Quatrilho, o primeiro filme brasileiro finalista do Oscar de melhor filme estrangeiro.

(A Modern Sound só está perdoada pela invasão por ter criado, em seus excelentes domínios, um charmoso misto de bar, espaço cultural e palco para a música que ainda resiste na cidade. Um sucesso que merece o nosso respeito.)

Nove salas é uma perda grande. E fica ainda maior se contabilizarmos, bairro a bairro, a derrocada das salas de cinema nas zonas sul e norte do Rio. Entrar no saudosismo barato não ajuda, é claro, mas é preciso pensar no destino da cultura. O slogan de uma conhecida e hoje bem reduzida rede carioca - Cinema ainda é a melhor diversão - ainda fala ao coração de muita gente capaz de gerenciar projetos de sucesso, como o Estação Botafogo, o Espaço Unibanco e o Arteplex, onde o cinema enquanto arte é a filosofia principal, temperada com a competência necessária para manter o equilíbrio financeiro. Isso sem falar nos Cinemark da vida, que asseguram o presente e o futuro do circuitão.

Estamos vivendo a era das lojas de R$ 1,99, das farmácias e dos varejões de roupa pronta. Ah, e como esquecer, também das locadoras e dos home-theaters - sem o cheiro da pipoca da carrocinha se misturando ao sereno da tarde, sem a doce ansiedade do primeiro ruído (rugido?) que silencia a tagarelice da espera e nos faz prender a respiração, à espera do novo? Cinema é cultura de primeira hora, de primeira linha, que transfigura a nossa imaginação e nos dá o poder do movimento, sem muita distinção de berço ou classe social.

O que fazer com uma Copacabana quase deserta de cinemas, que sofre sucessivos baques em sua tradição boêmia, efervescente? As forças culturais dessa cidade bem que poderiam se unir em oferenda aos deuses do cinema e, contra a maré demolidora, buscar um projeto que, equilibrando o cinema-entretenimento e o cinema-cultura, possa contra-atacar essa tristeza de cenário e fazer procriar a tela grande nos corações das atuais e futuras gerações de cinéfilos, formados ou em formação.

Esse novo complexo - já estou eu sonhando! - poderia, inclusive, batizar suas modernas salas com os nomes dos finados Rian, Caruso, Art, Jóia..., o que equivaleria a ressuscitá-los e devolvê-los à terra de onde, afinal, nunca deveriam ter saído.

terça-feira, setembro 06, 2005

Cada vez mais perto do perigo de viver

(da série "Tratado das letras de Parati")

Hoje, arrumando gavetas seculares, encontrei uma página meio amassada, talvez caída de sei lá que livro, com uma foto de Clarice Lispector - aristocrática, enigmática e forte, sempre forte como presença.

É inevitável: sempre que penso em Clarice, lembro do conto "Amor" - e da bolsa com os ovos, tão protegidos e de repente quebrados, coitados, espalhando seu amarelo pela tela da bolsa, esvaindo-se pela saia da personagem, por sua alma e pela calçada.

Um dos primeiros, dentre tantos outros, momentos de Clarice que me marcaram a ferro - e ovo - para a vida, o conto "Amor" fala do instante inexorável do acordar interno, de alguém que de repente se situa no mundo, abandona a casca da conveniência e encara a dor de dentro, o vazio e o precipício, o arriscado no ato de viver.

Na FLIP, que este ano homenageou a escritora, os encontros com Clarice foram marcados pela vertigem que ela sempre provocou - tanto com sua personalidade como com seu texto único. No espetáculo de abertura, falaram os poemas, os contos, os amigos e até os personagens, na pele dos atores que interpretaram uma espécie de versão de concerto de "A hora da estrela". Na mesa 3, "No raiar de Clarice", a escolha foi retratá-la do ponto de vista de amigos e estudiosos de sua obra, de um modo muito acolhedor, que aproximou o mito da platéia.

Marina Colasanti narrou como se fosse um romance a convivência de longos anos com a amiga, desde a descoberta, junto com o irmão Arduíno, do primeiro conto publicado na revista "Senhor" até os últimos anos em que, debilitada, era cercada pela atenção e o cuidado de todos os que a amavam.

Lembro-me de Clarice na antiga TV Tupi, na década de 60, com sua desenvoltura e aguda inteligência, gesticulando e fumando. Tinha uma presença impactante para mim, menina ainda e muito longe de seus livros. Só mais tarde, ao descobri-la em todo seu esplendor e intensidade literários, é que eu teria meios de fazer a conexão entre a enérgica debatedora e a mulher que deu voz ao sentimento mais exacerbado, mais fundo e quase insuportável.

Marina Colasanti diz que, diante de Clarice, havia toda uma reverência, um sentimento de adoração; ninguém abria a boca. Era como se em Clarice alguma coisa pudesse acontecer a qualquer momento. - Ela nunca coube em qualquer realidade, nem mesmo na sua - frisa Marina. - E todo o seu esforço, como escritora, está em buscar o seu outro eu.

"Quero apossar-me do 'é' da coisa." A frase, de Água Viva, me paralisou por meses. Tive medo, constrangimento, desentendimento, aflição - mudei de livro, de autor, de temática, fui e voltei, mas continuava atormentada. Agora, quando ouço de Marina Colasanti uma frase de Clarice - "Eu sou mais forte do que eu" - entendo melhor. Começo a me aproximar, chego quase à beirada e posso me arriscar a compreender.

"Às vezes acordo de madrugada e julgo ouvir o bater das teclas da máquina de escrever de minha mãe. Acostumei-me desde pequeno àquele ruído, às madrugadas que ela varava escrevendo." O depoimento emocionado do filho de Clarice Lispector cabe como uma luva no mosaico de impressões deixadas por essa mulher múltipla, praticamente dona de todas as palavras certas.

Há quem diga que ler Clarice é perigoso; o seu "território" é tão específico que muitos ficaram impotentes ao tentar seguir sua literatura. Clarice trilhou um caminho intensamente "de alma" - e suas obras são como tentativas verbais de alcançar um ponto que sempre lhe escapava, nas palavras de Benedito Nunes.

Mas o que acontece com quem lê a torrente de paixões que se arremessa da prosa de Clarice e sente que não pode fazer nada senão entregar-se, segui-la, intensificá-la acima de tudo? Nesse sentido, não há perigo no encontro. Antes, plenitude e um imenso desafio: sentir Clarice, verter Clarice para suas próprias palavras, intenções e gestos.

Lembro-me agora, de "A mulher que matou os peixes". Clarice cultivou muito o universo infantil, talvez por causa de seu filho, talvez porque amasse as crianças ou tivesse, ela mesma, algo de lúdico e simples em meio ao terremoto interno da mulher crescida. É um livro que qualquer criança entende, sente - e no qual viaja, hipnotizada, com bilhete sem volta.

Para Vilma Arêas, autora de "Clarice na ponta dos dedos", Clarice é intuitiva. Na verdade, ela era um mundo à parte, com tudo do melhor e do pior que o mundo de verdade tem. O incrível e fantástico é que, com essa multiplicidade e por caminhos tortuosos, Clarice entrava sem dificuldade no coração das pessoas e passeava pela alma com uma desenvoltura que podia assustar.

No mundo prático, Clarice não tinha lugar. Não se sentia à-vontade com as lides comezinhas do dia a dia. Ter de escrever para ganhar a vida - crônicas e até mesmo livros - era algo que a angustiava. Mal interpretada às vezes e injustamente taxada de reacionária ou alienada, Clarice tinha seu próprio jeito de interpretar a realidade brasileira. Assim, a pobreza e a exclusão foram temas de "A hora da estrela", enquanto, em sua última crônica, escreveu sobre o bandido conhecido como Mineirinho, assassinado com dez tiros. Envolvia-se, preocupava-se, mas não sabia viver direito num mundo sedento de palavras de ordem. Política, sim, partidária jamais.

Clarice falou como ninguém ao meu coração feminino em "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres", uma de suas obras ditas "menores" (Aliás, dessa questão de menores ou maiores, prefiro passar ao largo; existe apenas Clarice, que nasceu na Ucrânia mas criou sua alma aqui, no idioma das nossas contradições). "Uma aprendizagem" é todo intensidade, fervor - e nudez, também, um despir-se de tudo o que é mero, fugaz e incapaz de "ser" completamente.

Na FLIP, Clarice esteve perto, viva, menos mito que poesia. Marina Colasanti contou sobre um jantar que a própria Clarice pediu para ela fazer, num recado transmitido por Nélida Piñon. Ela queria ver os amigos. Marina fez, Clarice chegou "imperial", na definição dela - e logo depois desesperou-se numa dor de cabeça e pediu para ir embora. De nada adiantaram argumentos ou aspirinas. Precisava muito ir. "Tudo é terra dos outros onde os outros estão contentes" - sentenciou. Tudo o que Marina pôde fazer, diante disso, foi pedir ao marido, o poeta Affonso Romano de Santanna, que a levasse.

- Tenho certeza de que ela ficaria muito feliz em saber que, hoje, essa 'terra' é toda dela - concluiu amorosamente Marina.

Em respeitoso silêncio, todos nós concordamos e aplaudimos com o nosso coração selvagem totalmente dominado pela lembrança e pelo mistério de Clarice.

domingo, setembro 04, 2005

Cinco a zero

Domingo de grande decisão, o Brasil praticamente inteiro na frente da televisão: é hora de carimbar o passaporte pra Alemanha, como diz o inspirado comentarista global.

E vencemos com todos os requintes, até direito ao quinto tento no último minuto do segundo tempo. E o adversário, coitado! Nada de gol de honra; é fazer as malas e adeus. Um cinco a zero na veia, um pico de adrenalina para restabelecer o fôlego da confiança, ultimamente tão abalada, dos brasileiros.

Que é bom, não adianta negar. Mesmo quem diz não ligar pra futebol pode sentir o amarelo no ar, aquele amarelão de ouro que tremula na arquibancada, que venta na alma. É uma força nada estranha, um "eu sabia" que, ainda que não tão sabido assim, sai do coração com tanta certeza, com tanta empolgação, que emociona de verdade.

Nos braços dessa alegria, fiquei pensando em como seria bom se ganhássemos de cinco a zero em outras lutas além do gramado. Se a gente derrotasse a fome por cinco a zero, por exemplo - e goleasse de vez, irremediavelmente, essa funesta senhora que insiste tanto em destruir vidas tão importantes para o nosso destino e futuro.

Tenho certeza de que, se déssemos de cinco a zero na porção abjeta da classe política que consegue encher os bolsos com o dinheiro que faria a diferença entre vida e morte de crianças, entre o remédio ou a condenação para um idoso, entre o futuro e uma arma para um adolescente cooptado pelo tráfico, daríamos um golpe mortalíssimo na miséria que se mostra para nós todo dia, abatendo a dignidade de quem precisa e de quem atende.

Precisamos golear as incertezas, as descrenças, as maldades. Tinha de ser cinco a zero também nas mazelas do Rio de Janeiro, de São Paulo, no estado de calamidade a que o nosso sistema jurídico e penitenciário está reduzido. Somos reféns do crime, do desgoverno, de nós mesmos e de nossos medos e preconceitos.

O nosso povo que canta e bem podia ser feliz, mas não é, o nosso povo que dança de um jeito e dança de outro, bem que podia ir em massa atrás desse cinco a zero. Não num espetáculo gigantesco, uma produção para a mídia, mas com passo firme, decidido, fechado com a vontade de mudar. Muito além dos 90 minutos de uma emoção bela, legítima, mas passageira - e no entanto, com a mesma garra, graça, ginga e raça, que é o que não falta por aqui.

Está na hora de profissionalizar o talento pra golear que a gente tem de sobra. A equipe técnica sempre esteve pronta, é só entrar em campo.

O que será, então, que a gente está esperando?