domingo, agosto 28, 2005

Ferocidade legalizada

Por uns bons dias cheguei a acreditar na Justiça brasileira: a aprovação de uma severa legislação para impedir a violência de cães das raças pitbull e rotweiller me fez achar que, afinal, nem tudo estava perdido. Acreditei nessa lei, numa iniciativa que visava claramente a extinção progressiva dessas raças no Rio de Janeiro.

Pois eu estava errada; a Assembléia Legislativa "abrandou" o rigor da lei e permitiu aos "pobres animais" passear a qualquer hora do dia, "desde que com focinheira, enforcador e conduzidos por maiores de 18 anos".

É inacreditável o número de vozes que se levantaram em defesa desses assassinos em série, alegando que o texto da lei legaliza "maus-tratos". Acaso uma criança que faz malabarismo num sinal de trânsito, que dorme na rua, que passa fome e cheira cola na madrugada merece uma atenção dessas? São momentos surreais que me fazem lembrar o engenhoso protesto musical de Eduardo Dusek, nos anos 80: "Troque seu cachorro por uma criança pobre..." Não, eles não querem trocar; aliás, os donos de cães ferozes, na sua imensa maioria beligerantes, acham que seus bichinhos são "incapazes de violência" e invarialmente acusam as vítimas de "provocação". Criança morta em favela, na rua ou por bala perdida é estatística, mas cartão de vacinação de pitbull é sagrado.

Sempre achei que dono de cão feroz tinha de ter porte de arma, com registro e tudo o mais. Bem, nesse ponto a lei concorda comigo; agora todo mundo tem que registrar na Polícia o seu animalzinho de estimação. Já é alguma coisa. Mas ostentar um bicho desses à luz do dia, nas mesmas ruas em que mães passeiam com seus bebês e onde os velhinhos mais modernos fazem suas caminhadas, é demais.

Proponho relançarmos a música de Eduardo Dusek com camisetas, faixas, passeatas e ações de cidadania. Nem que seja para iluminar, com todos os holofotes, o ridículo que é defender pitbull de rico e ignorar a massa invisível de crianças e adolescentes que é engolida a cada ano por estatísticas inclementes, conivência geral e pouco ou nenhum interesse do Estado em lhes dar sequer a perspectiva de um futuro.

Sonoridades no rumo da paz

Tão irritada fiquei com as críticas ao programa de Schöenberg no Municipal que me inflamei a ponto de esquecer, temporariamente, de comentar o imenso prazer que foi assistir à Filarmônica de Israel, sob a batuta de Zubin Mehta.

O maestro me é caro por motivos que vão muito além de sua consagrada competência. Mora no meu imaginário sua presença forte e emocionada à frente do primeiro Concerto dos Três Tenores, nas Termas de Caracalla, em 1990. Aquele momento absolutamente inesquecível, que devolvia um ainda combalido porém bravo José Carreras às platéias de todo o mundo, após curar-se de uma leucemia, ficou guardado no coração, mesmo após o natural desgaste provocado pelas inúmeras repetições da fórmula. Mas Zubin Mehta foi o artífice da primeira - e, em muitos aspectos, única - reunião das vozes mais importantes do mundo, em torno de uma comemoração alegre e pacífica: o futebol, paixão dos três, paixão de muitos.

Na recente entrevista ao Caderno B do Jornal do Brasil, vemos um Zubin Mehta vigoroso, fértil, alegre e com pendores brasileiríssimos para apreciar o sol, a caipirinha e a macumba ("não abro mão!"). Ativo na música, ativo na vida, Zubin Mehta quer reger o concerto que celebrará a paz entre Israel e Palestina, afirma com um sorriso convicto, quase infantil. Bons ventos; a gente merece ver gente incansável, que tem talento para a arte e a cidadania, fazer planos, desenhar futuros que podem ser decisivos. Nos seus muitos anos à frente da Orquestra Filarmônica de Israel, sempre procurou semear a paz ao longo das notas musicais, onde quer que se apresente e seja qual for o repertório. Arriscou Wagner em Jerusalém, com a pretensão de curar feridas com a magnitude da música; hoje, apesar de admitir que foi um erro naquele momento, prova que ainda crê no poder universal e transformador da música, mesmo nos momentos mais difíceis.

No palco do Municipal, a Filarmônica de Israel não decepcionou: não faltaram uma emotividade sutil, crescente e contínua, qualidade verdadeira, talento e esforço concentrado. Um teatro lotado, em suspenso, mal respirava ante o cuidado, a confiança, a certeza de uma equipe que se entrelaça ao seu condutor, guia e mestre e responde com imensa energia e talento ao que se exige dela.

E como se exige! À clareza e suavidade da Sinfonia nº 41 em Dó maior ou "Júpiter", de Mozart, segue-se o angustiado e tortuoso diálogo musical que caracteriza a "Trágica" de Mahler (Sinfonia nº 6 em Lá menor) - que, segundo as reminiscências da esposa do compositor, Alma Mahler, era a obra que mais profundamente o emocionava. Somente uma orquestra perfeitamente madura e profundamente viva seria capaz de executar tão ambicioso programa com um equilíbrio perfeito entre emoção e técnica, como o fez a Filarmônica de Israel. Sem a menor pretensão de analisar as filigranas do desempenho musical, recebo apenas a beleza e a emoção que tomaram conta do meu espírito e inundaram de felicidade os meus sentidos auditivos.

Com o concerto, fiquei mais confiante na promessa de Zubin Mehta para celebrar a paz; afinal, quem constrói milagres musicais como o que tivemos aqui no Rio, no dia 18 de agosto, só pode ser a pessoa certa para dar o tom de um futuro que a humanidade toda quer ver acontecer.

quarta-feira, agosto 24, 2005

Abaixo a arte, viva o cenário????

Sem a menor vontade de voltar a mencionar o caos mental em que caímos, talvez por influência da crise nacional de auto-estima provocada pelos ventos dircélicos e delubianos, devo dizer que me espanto em verificar que esses sintomas vêm atingindo também a arte. E de forma grave, a tal ponto que até experientes críticos confundem muitas coisas - e passam a louvar o que não acontece em lugar do que acontece.
É meio como naquele recurso de computador em que você move uma forma "para trás" ou "para a frente", dependendo das circunstâncias. E às vezes o que você move para trás pode ser muito mais importante do que o que acaba ficando na frente.

Assisti na estréia ao duplo Schoenberg produzido pelo Theatro Municipal do Rio, composto da ópera Erwartung e do balé Noite Transfigurada. Para mim, foi um acerto em muitos aspectos: o bom-gosto, o refinamento, os intérpretes, a direção, a coreografia, concepção, bailarinos, figurinos e cenário. Na ordem em que aprendi a compreender a cena teatral, a primeira coisa visível aos meus olhos e ouvidos é o artista. Através dele e de seu desempenho é que entram em cena a competência da direção, no caso da ópera, e a coreografia, no caso do balé. Os figurinos complementam, a iluminação realça, o cenário situa.

E nessa produção não foi diferente. Os dois momentos nos trouxeram suas lições de beleza e intensidade, força, sutileza, poesia.

Confesso que o dodecafonismo exige sempre de mim um esforço maior, já que sou mais afeiçoada ao melódico. Mas ouvi com o maior respeito a ópera Erwartung que, embora não empolgue, é carregada de um drama profundo e pungente. A concepção me pareceu sensível, exata. Laura de Souza correspondeu plenamente e conseguiu manter a intensidade, que foi o que mais me prendeu desde o início. Lamentei, como tenho certeza a maioria dos presentes, a falta das legendas. Uma obra difícil como esta, que exige do intérprete um esforço quase sobre-humano, já que a protagonista deve comandar a cena sozinha no palco com sua dor e desventura, teria na legenda um apoio essencial. Aliás, legenda não é uma praxe, algo dispensável em ópera: faz parte da função, do contrato que se celebra entre espectador e obra.

Soube no intervalo que a ausência das legendas foi imposição unilateral do cenógrafo, pois segundo ele desviaria a atenção do "seu" cenário, e aceita sem questionamentos por parte da direção da casa.

Este foi o meu primeiro espanto. Não compreendo, já que o cenário de Erwartung é deslumbrante e sem dúvida nenhuma extremamente valorizado pela iluminação. A legenda, obrigatória, fez falta à compreensão do todo e prejudicou o resultado.
Noite Transfigurada foi, no mínimo, um prazer indizível; impecável na estética, poético no movimento, artístico até mais não poder e de um refinamento a toda prova, o balé criado por Fábio de Mello é novo na maneira de traduzir em formas a sensualidade e a tensão da música. Além disso, valoriza cada dupla de bailarinos em particular, exatamente naquilo em que cada uma tem de melhor. Um grande poema sob medida, sem fragmentações, sem resvalar em mesmices, com beleza romântica e humana ao mesmo tempo. O conjunto masculino que representa a noite, mas que também poderia representar o lado sombrio do coração daquelas quatro mulheres em uma, enquanto permitem assomarem seus sentimentos de dúvida, medo e insegurança, faz uma costura de cena belíssima, com figurinos afinados com as tonalidades da iluminação. São seres fantásticos e, por isso mesmo, as roupas assinadas por Rosa Magalhães fazem questão de sublinhar esse aspecto mágico de um poder que envolve, oscila e circunda a consciência que se debate.

Para mim, foram emoções na medida; enquanto Erwartung me atirou no chão com alguns arranhões, Noite Transfigurada me deu uma oportunidade de arriscar a jornada do herói e chegar a uma espécie de iluminação, mesmo carregando a dor como documento da alma.

Mas o que eu não sabia é que o meu espanto cresceria imensamente nos dias que se seguiram, ao me deparar com as críticas de Roberto Pereira, ontem no Jornal do Brasil, e Silvia Soter, hoje no Globo.

As opiniões de ambos fazem coro em ponto e contraponto. O que as diferencia, basicamente, é a elegância, no caso de Silvia Soter, e o escárnio de Roberto Pereira. Tamanha concordância só fez aumentar o meu leigo espanto, após uma noite de estréia em que a platéia simplesmente não permitia que a cortina se fechasse, tamanha a felicidade coletiva pelo belo resultado. Será que os críticos são pessoas tão acima do bem e do mal que conseguem enxergar monstros onde os pobres mortais da platéia só vêem flores?

De tudo, o que mais espanta - com a devida vênia pelo uso excessivo, esta é a palavra que melhor traduz o meu estado de espírito - é que o cenário seja mais festejado pela crítica do que a obra de arte! Roberto Pereira, inclusive, chega a considerá-lo "sozinho em cena", desprezando solenemente coreógrafos e bailarinos! No Globo, o cenário ganha inclusive uma crítica própria, de Luiz Camillo Osório, que ressalta seu "diálogo" com a música de Schoenberg...

Francamente, creio que um amante de música ou dança jamais pagaria um ingresso para se sentar no Theatro Municipal e assistir a um cenário que dialoga com a essência da música dodecafônica e dispensa a presença de orquestra, maestro, cantores e bailarinos. Ainda que esse cenário seja assinado por um importante artista plástico brasileiro - e que seja belo, sensível e bem executado. Na ópera ou no balé, cenário é um elemento complementar, sem que isso desmereça sua importância. Quando um cenário ganha espaço na mídia e é exaltado acima do conteúdo do espetáculo, alguma coisa está muito errada. E, como testemunha, posso dizer que o erro não está, de modo algum, no conteúdo de uma produção competente e bem realizada, apoiada no talento de gente experimentada e sensível como o maestro Colarusso, o diretor da ópera, Gilberto Gavronsky, a intérprete Laura de Souza, o coreógrafo Fábio de Mello e, meu Deus, bailarinos da estirpe de Ana Botafogo, Áurea Hammerli, Nora Esteves, Sandra Queiroz, Marcelo Misailidis, Vitor Luiz, Joseny Coutinho e Paulo Henrique. Emoldurados luxuosamente, diga-se de passagem, pela iluminação de Paulinho Medeiros.

Senti farpas de maldade na crítica de Roberto Pereira, que não conheço; agulhas espalhadas em várias direções, dando a nítida impressão de querer atingir alvos específicos. Já Silvia Soter foi mais técnica e comedida, objetivando o tema com o suporte da lógica e da técnica. Ambos, porém, apressaram-se em rotular Rosa Magalhães, deixando de captar sua poética construção para os figurinos do balé, em absoluta sintonia com as necessidades de expressão e movimentos. As alusões ao carnaval me pareceram uma tentativa de anular as múltiplas competências da figurinista, como se fosse obrigatório comparar projetos em nada comparáveis.

Na minha felicidade em assistir ao espetáculo e me orgulhar dos nossos artistas, não me preparei para a ferocidade com que alguns podem se dedicar a minimizar o talento e o profissionalismo deles. O que fica é um estranhamento, uma ponta de desconforto e também uma certa revolta, porque, ainda que os textos sejam assinados, ninguém, nem mesmo os autores, pode responder pelo estrago que eles causam. Daí a importância de se assistir, a todo custo, à arte em ação no palco, ainda que essa arte tenha defeitos, pois fatalmente terá qualidades. A arte verdadeira e sincera sempre emocionará o público, pois vale mais que milhões de palavras-agulhas, expressões-dardos ou frases-morteiros soltas ao vento.

quinta-feira, agosto 18, 2005

Vida que explode

Sergio Britto. Ponto final e inicial. Não vale tentar defini-lo com termos extraídos do catálogo normal do nosso vocabulário. Ver o Sergio em ação é reaprendê-lo sempre, pois nada é e nem pode ser esperado; é um testemunho novo, reinventado, reescrito, reinterpretado com uma autenticidade absolutamente autoral e viva, verdadeira, que não se repete jamais, ainda que um mesmo texto, voz e expressões sejam evocados a cada noite. Tudo o que parece ser igual, na verdade é sem igual. E Sergio Britto, 83 anos e a mais absoluta expressão da vitalidade de corpo, alma e coração, se dá de presente à platéia, aos afortunados por estarem diante dele, a cada dia com a mais absoluta originalidade. E com a generosidade de quem aprendeu a viver tudo de novo, com todas as forças, a cada momento.

Jung e eu, eu e Jung: idéia, texto e arquitetura de grande beleza, mérito dos autores Domingos de Oliveira e Giselle Falbo Kosovski, sem dúvida, mas costurado direto no corpo, na alma, na anima de Sergio Britto. Ou terá sido essa anima a se imiscuir na própria criação, dando-lhe a essência que subverte as palavras de tal forma que as transforma em vida orgânica, numa globulina espiritual que faz tremerem as veias de quem as presencia, como se o próprio sangue não agüentasse ficar preso no corpo da gente? Sergio Britto dividido e multiplicado nas peles do Dr. Jung e do ator Leonardo-Svoba-ele-mesmo que vai vivê-lo, os dois tecidos um à imagem e semelhança do outro, separados apenas por obra e graça de um cênico par de óculos, é a expressão máxima do que seria, para mim, uma definição de "vida". Vida que urge, que teima, que incandesce, cresce, domina, envolve, seduz, distribui-se, alaga, enreda e se doa completamente.

E o nosso Sergio maior - aquele que aprendemos a amar pelo talento, grandeza e peso intelectual na história do nosso teatro - prova mais uma vez que é muito, muito mais que isto. Menino sempre pronto para o novo, o surpreendente, o inusitado, o inimaginável que no entanto o confirma: Sergio nas mãos da vida e a brincar com ela, a dar-lhe voz aqui, voz ali, a argumentar e contra-argumentar com tudo o que é improvável, mágico e belo. E só, inteiro, desarmado diante do enorme, enorme desafio. Sergio é a sinceridade sem disfarces, é aquele que se entrega com tal intensidade a quem quer recebê-lo que acaba fazendo parte de sua alma.

No encontro amoroso com Jung via Svoba, Sergio nos convida e nos leva ao espaço sem gravidade das emoções mais profundas, praticamente exige que abramos nossa alma e deixemos de lado as vidas diárias tão exigentes para
fluir com ele e seus personagens rumo àquilo em nós que quase sempre não ousamos tocar. E súbito as teorias se tornam leves, permeáveis, acessíveis ao coração como um sopro da vida verdadeira que ele solta no ar, pega quem quiser, contamina-se quem estiver pronto e disponível.

Sergio e sua vida pulsante são um tesouro fantástico que absorvemos com uma estranha felicidade, um sorriso avarento de quem descobre de repente que possui ao menos um pedacinho da maior obra de arte jamais concebida, e que pode dispor dela à-vontade mas não pode contar a ninguém, não, não deve, pois quem sabe, Deus o livre, ela pode de repente se esvair e então, como fica o coração?

Sergio Britto, Carl Gustaf Jung, Leonardo Svoba. Nomes novos e eternos para a nossa esperança e um lampejo de felicidade e vida, vida, vida para aplacar a dor dos tempos e nos fazer tomados, num instante único, da sensação de que podemos ser melhores.

quarta-feira, agosto 03, 2005

Contro-versos

(da série "Tratado das Letras de Parati", sobre a Mesa 2 - Coro dos contrários)

Poema nem de longe inunda a sala,
resvala com algum escândalo
por espaço mínimo,
senta-se para conversar,
mas sem muito ânimo.
Muitos esperam, suspiram
e até conspiram,
mas poema quer nem saber.

Um aplauso mediado se anuncia
mas não eclode,
enquanto a voz do cais
fala em referências.

(Não ouço a música das palavras
no espaço suspenso
onde agora poderiam brincar.)

A moça loura com olhos de boneca
se esvai

pretenso jogo de desdém

e encolhe o verso.

Apenas resta
um bravo navegante
a singrar ventos de Macau
com música, música, sim,
de palavras! Que começam
a chegar de roldão,
e belas, e cheias,
e plenas, enfim,
ocupando o tempo
como vastos véus
de algodão recém-tecido.

(Poema abre um olho só,
mas fecha depressa
e se recosta,
fingindo dormir.)

No espaço escorrido
do tempo quase frustrado
as palavras não se vestem
da festa pretentida.

Poema talvez desejasse voar,
mas de que jeito?
Melhor puxar a cortina,
se houvesse uma,
e dançar
nas pedras da rua.

Um segundo escuro pontilhado de estrelas

"Agora vai ficar tudo escuro, mas em seguida volta", instrui a voz confiável. Espero, mal respiro. O medo silencia e obedece. E de fato escurece, mas - incrível! - há múltiplos pontos coloridos no escuro fugaz. Logo em seguida, minha visão volta, enquanto a cirurgia prossegue. O medo se afasta de vez, e acompanho fascinada o que ocorre à flor dos meus olhos que em breve se verão renovados, livres da permanente dependência dos óculos, por mais "fashion" que possam parecer.

A aventura é quase indescritível. Ao decidir embarcar, escolhi a companhia do Dr. Carlucio Andrade, mais que experiente oftalmologista e cirurgião carioca. Como todo mundo que viveu a mesma situação, tenho certeza, alternei-me entre o temor, a dúvida e a determinação que, no final, se fez maior.

Deitada na cadeira cirúrgica, penso apenas em concentrar-me no meu papel: não atrapalhar. O cirurgião explica com suavidade cada fase do processo. Em contraste com o breve tremor que me assaltava ao vestir as roupas hospitalares, pantufas e touca (um frio irreal que crescia e se tornava quase insuportável), agora sinto-me bem, tranqüilizada e consciente. E assisto ao milagre tecnológico, operado pela mão precisa do profissional.

O olho tudo vê, mas como se fosse o de outra pessoa: não há sensação física, somente uma observação constante, um desfilar de imagens ora firmes, ora desfocadas, guiadas por uma luz permanente, ora verde, ora vermelha, que mantém o olhar cativo e firme. Sinto-me espectadora de mim mesma, não protagonista. Não imagino catástrofes e nem me dedico a pensar no ato cru e material da cirurgia. Só a viagem mágica existe, a contemplação de mundos feitos de caleidoscópio.

"Agora vamos fazer o laser. Você vai ouvir um barulho e tudo vai demorar uns vinte segundos, no máximo."

Esta é a hora em que a minha visão vai mudar para sempre, penso. E continuo a buscar a luzinha-guia, com toda calma, até que o anunciado barulho, nem tão alto assim, silencia. Seguem-se as operações finais, que a voz sempre informa. E o final de tudo, em inacreditáveis dez minutos.

Levanto-me da cadeira e recebo um par de óculos escuros tipo Matrix. Saio caminhando tranqüilamente e sou conduzida até a sala de espera, onde aguardarei um último exame, após uns trinta minutos. Lá encontro os operados que me antecederam e encontrarei, dentro em pouco, os que me sucederão. Instaura-se no ambiente uma espécie de terapia grupal, onde todos riem, aliviam-se das tensões passadas e se contemplam por trás dos óculos iguais, antecipando a felicidade futura de enxergar melhor. Adoro esse momento e deixo-me levar, com os até então desconhecidos que de repente partilham comigo algo especial e único.

Passo pelo exame, sou liberada e sigo para casa. Sozinha, heróica e triunfante como nunca.

No caminho, penso nos vários milagres que vivi - a tecnologia, a competência e humanidade do médico, a determinação interior de vencer o medo e dar um passo adiante. E contemplo esse lado bom da evolução: trabalhar para criar formas de fazer alguém sentir-se mais capaz, como eu me sinto agora. Em mais dez dias, operarei o outro olho e poderei sair de casa sem óculos. De novo, como há muitos anos atrás, olharei de frente para a vida sem anteparos, e conseguirei enxergá-la em suas cores reais ou, pelo menos, nas cores que os olhos da minha alma interpretam como reais.

Estranha e boa felicidade, libertada por um simples e novo olhar.