domingo, julho 24, 2005

Todas as guerras nos afetam

Talvez por um mecanismo psicológico de defesa, temos uma certa tendência a cristalizar nossos sentimentos mais profundos diante de situações de perigo, conflito, guerra. Vivemos em torno dessas situações, sejam elas próximas ou aparentemente distantes, como se elas não nos afetassem, como se tudo acontecesse somente com os outros.

Até presenciar um ato violento, como protagonista ou não. Ver aquela dor passar por dentro do corpo, guardar-se em imagens na memória, um filme que insiste em se reproduzir na tela da consciência.

Ou até ser atropelado e tocado pelo relato de alguém que viveu, ou vive, uma guerra. Nesses momentos, dá-se a ponte entre a humanidade que mora em nós e as situações que ameaçam essa humanidade.

A Flip 2005 provocou em mim umas tantas alterações nesse sentido. O ambiente esteve todo o tempo aberto à exposição de relatos de experiências fortes, não para que fossem vistas como curiosidades, como forma de ampliar nossos insights, mas justamente para nos confrontar com duras realidades que mudam o mundo a cada segundo e sacodem, violentamente, o quintal da nossa alma.

Me lembro de uma cena exibida em todos os telejornais há um tempo atrás, que me marcou profundamente: um palestino e seu filho de uns 10, 11 anos, tentavam passar por uma calçada onde só havia um muro, nenhum lugar para se proteger, com o exército atirando bem à frente. O pobre homem, desesperado, fazia sinais, pedia passagem, tentava dizer "Por favor, deixa a gente passar!" a metralhadoras insensíveis produzindo balas a todo vapor, ao mesmo tempo em que tentava inutilmente proteger, com o próprio corpo, o corpo do filho. E tudo documentado por uma câmera de frente para o crime. As balas não cessam, apesar dos apelos, a criança é brutalmente assassinada e o pai fica muito ferido. O desespero daquela cena jamais saiu da minha memória. No dia seguite, soube pelos jornais que o homem sobrevivera, e me lembro de ter sentido uma enorme dor. Pensei: talvez fosse melhor morrer, numa situação dessas. Uma pessoa comum, pacífica, que só deseja, e não consegue, fazer o que todo pai desejaria num momento daqueles: proteger seu filho de todo mal. E fica apenas com a morte nas mãos.

Anos mais tarde, numa tarde de domingo que se anunciava aprazível no Rio de Janeiro, chego de carro ao Centro Cultural Banco do Brasil, com duas amigas. Ia ver uma exposição de desenhos de Rembrandt. Logo ao saltar, alguém na porta do Centro Cultural diz: "Olha!" Olhei e, a poucos passos de nós, no meio da rua, um homem com uma bala na testa era imobilizado por um policial à paisana que brandia em todas as direções uma pistola a meu ver gigantesca. Apavoradas, retornamos ao carro e nos abaixamos, sem saber o que poderia acontecer. O homem, possivelmente um assaltante (jamais saberemos), morreu na calçada. E o domingo inacabado se esvaiu em tristeza.,

Na Flip, vários depoimentos vieram mexer nessas feridas aparentemente pequenas. E tiveram o efeito de um estranho mas necessário despertar. No Rio de Janeiro, em Jerusalém, em Bagdá, na faixa de Gaza, em Angola, nas muitas favelas brasileiras dominadas pelo tráfico, em Madri e Londres, no Egito e em muitos lugares que não figuram nos jornais, a insanidade destrói vidas o tempo inteiro, por milhões de motivos e nenhuma razão.

MVBill é um rapaz admirável, que se diz salvo pelo hip hop e pelos livros, que descobriu trabalhando numa banca de jornal. O hip hop foi a ponte para vencer a invisibilidade de quem é "preto, pobre, mora em favela e teve uma infância padronizada, com muito trabalho e pouco estudo", segundo suas próprias palavras.
Hoje luta para diminuir o genocídio de jovens pretos e mestiços das favelas por conta do tráfico, mais de armas do que de drogas, segundo suas pesquisas, relatadas no livro "Cabeça de Porco", escrito em parceria com seu empresário Celso Athayde e o sociólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário de Segurança do Rio de Janeiro e alvo de perseguições políticas que o obrigaram, inclusive, a se auto-exilar no exterior.

Com o clip "Soldado do morro", que retratava jovens do próprio tráfico, Bill quis documentar a dimensão da tragédia que condena à morte 100 em cada cem mil adolescentes brasileiros pretos e pobres, estatística pior do que a de conflitos como o do Oriente Médio, por exemplo. Em vez disso, foi acusado de fazer a apologia do tráfico e responde processo até hoje. Vozes em sua defesa? Nenhuma, a não ser a de Luiz Eduardo Soares, que nem sequer o conhecia, mas sabia tudo das artes e manhas entre o aparelho policial e o tráfico. "Quando li sua entrevista na revista Caros Amigos, vi que ele só fez isso pela verdade", emociona-se Bill.

Dos 16 jovens que aparecem no clip "Soldado do Morro", quinze já estão mortos. Rodando o Brasil inteiro para documentar a situação dos jovens reféns do tráfico, MV Bill e Celso Athayde perceberam que a dimensão do problema era muito maior do que pensavam; as mortes continuam, do Oiapoque ao Chuí, e muitas não são noticiadas. Com quase 180 horas de material filmado, Bill admite que o problema está longe de uma solução. No noticiário, ganham espaço as mortes mais "próximas" das metrópoles, mas ninguém fala do problema em termos nacionais. Os jovens filmados falam de sua esperança de mudar, de seus sonhos e dores. Um dos retratados no clip, também assassinado, tinha uma enorme revolta porque a mãe "morreu antes de me levar no Beto Carrero". Seu maior desejo era ser palhaço.

Saída não tem, mas, segundo Bill, "a humildade é o nosso método científico." Dentro de um quadro que parece insolúvel, e a partir do tamanho do abismo, sem arrogância, "talvez a gente consiga inventar um jeito de sair. Porque tem que haver um jeito".

Pedro Rosa Mendes, jornalista português, percorreu durante quatro meses áreas imensas de Angola que não eram visitadas por ninguém e representavam "uma cápsula gigantesca de invisibilidade e silêncio". A missão, realizada por sua conta e risco, era entender o conflito.

Já nos preparativos do que chama de sua "viagem através do vazio literal", Pedro descobriu que ninguém sabia nada do que se passava no país. Munido apenas de sua curiosidade jornalística, Pedro percorreu o território da guerra, que não existe para a economia e nem para o turismo: um arquipélago de vazio onde milhões de indivíduos reproduzem a solidão, isolados de ingredientes básicos da condição humana, como a memória de uma língua, da família etc. Em quatro décadas de conflito, 75% da população angolana tem hoje menos de 25 anos; desses, a grande maioria tem no máximo 15 anos. A guerra primitiva, porém servida pelos mais modernos instrumentos de morte criados pelo homem, deixa atrás de si um imenso rastro de destruição, onde todas as as referências foram cortadas, além de uma vasta legião de mutilados pelas minas terrestres.

Pedro Rosa Mendes fez questão de registrar sua viagem no livro "Baía dos Tigres", para que não seja possível dizer que essas coisas não aocnteceram. E se emociona com a generosidade dos sobreviventes, que reinventam a vida todos os dias. "Numa guerra assim morremos coletivamente, mas quando se chega a inventar a vida nessas condições, já não é uma sobrevida, mas uma vida muito além da morte".

Mas Pedro não se exime da responsabilidade. "Esse esterco humano, gente pilhada de toda normalidade a um nível dantesco, foi produzido por nós." E denuncia o papel financiador das empresas multinacionais que alimentam o conflito para servir a seus interesses.

John Lee Anderson, que conhece bem Angola, concorda que é um dos lugares mais esquecidos da terra. "Saí dali profundamente entristecido e com uma raiva que não sentia há tempos." O jornalista americano faz coro às denûncias de Pedro: "Há pessoas amputadas por todos os lados e sangue nas ruas. O país está destruído, mas o petróleo e os diamantes continuam a sair regularmente, sem qualquer problema." E a história é a mesma em Bagdá: "O maior exército do país é contratado pelas empresas petrolíferas, para proteger o oleoduto."

Nesse sentido, os dois concordam que a lógica de poder em Angola, no Iraque e em Serra Leoa é bem parecida. "Apenas por má fé conseguimos ignorar que as piores zonas de conflito são zonas de pilhagem", comenta Pedro. Angola garante 9% das necessidades energéticas dos Estados Unidos; nos momentos mais drámáticos, quando o conflito matava 1000 pessoas por dia, o comércio de diamantes financiava a Unita com 500 milhões de dólares.

Para ambos, esse tipo de círculo vicioso ocorre sempre que as zonas de conflito são mantidas numa membrana de invisibilidade. Por isso é tão importante escrever e mostrar, revelar todas as cores da tragédia.

Em Bagdá, os ataques a jornalistas se tornaram parte do conflito. E John Lee Anderson vê isso de forma preocupante, porque "a segurança é tão precária, qualquer controle é tão impossível que não se consegue chegar à cidade. Há carros-bomba suicidas e o exército não controla o trajeto entre o aeroporto e o centro de Bagdá. Muitos jornalistas vivem dentro da chamada "zona verde" e o único meio de cobrir é com imagens fornecidas por um dos lados do conflito. "Só se pode sair disfarçado ou à noite. É terrível, pois os jornalistas não são respeitados como apartidários".

John Lee Anderson alerta para o fato de que o Iraque não era campo de batalha do terrorismo, mas agora já é, numa guerra sem piedade. E os jornalistas são perdedores porque não conseguem mais informar: as opiniões são muito polarizadas. Mas mesmo assim, é importante que "não deixem que o conflito perca importância, porque Bagdá ainda é uma capital com 5 milhões de pessoas e teremos um monte de vítimas, diretas ou indiretas. E ser vítima não é uma condição nobre, nem torna alguém uma boa pessoa."

Pedro Rosa Mendes considera que a maior tragédia de lugares como Angola, Colômbia e Afeganistão é que "o conflito torna-se autônomo, despido de toda razão ou ideologia, e essa autonomia é viabilizada pela máquina da guerra, fruto dos interesses econômicos."

Como viver tudo isso, escrever e sobreviver? John Lee Anderson precisa de um período de "descompressão", ao sair de uma zona de conflito. "Eu sentia muita raiva, não podia ir de uma situação a outra assim impunemente. Então, quando saí do Iraque, fiquei uns quatro dias em outro lugar, para me compensar." Apesar das dores, o jornalista acha melhor ter suas feridas "abertas" do que cicatrizadas. "Prefiro ter todas as memórias comigo, para saber onde caminho e onde cai minha sombra."

Para Pedro, é preciso desenhar uma espécie de "fronteira cartográfica" entre aquilo que se vê e o que ocorre em si, para que seja possível refletir sobre a violência e dar-lhe uma linguagem que seja inteligível para quem não viveu a situação. "É preciso colher os espinhos no fim do dia".

Ao longo de sua viagem de quatro meses, que coincidiu com os quatro meses finais da primeira gravidez de sua mulher, Pedro Rosa Mendes carregou consigo a primeira ecografia de sua filha Inês. "Naquele papel tinha mais ou menos a linha do rosto dela no dia da minha partida. Não gosto de andar com retratos dos que me são caros, mas levei a ecografia. A tinta desse tipo de impressão sai com facilidade, e ao longo do tempo parece que se desvanecia, mas ao mesmo tempo continuava lá. E eu tinha que voltar antes que o rosto dela sumisse de vez. Aquela ecografia foi o meu elo com a realidade para a qual eu sabia que retornaria."

David Grossman falou no primeiro dia da Flip, e de certa forma foi ele quem abriu minha "ferida pessoal" sobre conflitos e responsabilidades, com uma constatação totalmente inesperada: "Nós, o povo judeu, temos um passado e tradições, mas não temos futuro. Viver em Jerusalém é como viver numa casa com paredes móveis; você não sabe direito onde está, onde vai, como fazer qualquer planejamento." A sinceridade de seu testemunho me emocionou e chocou, fez pensar e melhorou minha capacidade de ouvir naquele exato instante. Indo além, David insistiu na necessidade de nos colocarmos no lugar do outro, num conflito, mesmo que esse outro seja o "inimigo". Todos têm razões e nenhum tem razão, por isso é preciso combater o radicalismo, a arbitrariedade, a insanidade de parte a parte. É esse o compromisso que ele sempre teve em anos de jornalismo, em suas inúmeras crônicas, ensaios, palestras e em seu trabalho como escritor.

Estamos aí, todos, diante dessa insanidade - tragicamente exemplificada pelo brutal assassinato de um jovem brasileiro, eletricista mineiro de 27 anos e há quase três em Londres, por uma Scotland Yard que, cega pelo medo e pela impotência, o confundiu com um terrorista. Qual é a guerra que não nos afeta? Somos todos responsáveis e temos, como diz MVBill, de 'inventar uma saída', um jeito de nos comprometer, ainda que isso se restrinja a umas poucas linhas num blog, uma crônica de jornal, um livro-reportagem, um lívro-denúncia.

Se temos direito à condição humana, temos de atravessar as barreiras dessa dor e construir alguma coisa, cada qual com sua enxada e pá, mesmo que, em vez de metal, ela seja feita de palavras.

sábado, julho 16, 2005

Concordo em prosa e verso...

(da série "Tratado das Letras de Parati")

... com a jornalista Mànya Millen, em seu artigo "Palavras necessárias", do Globo de hoje: o que ficou da Flip 2005 foram as idéias - apaixonadas, vibrantes, inusitadas, poderosas - que tornam a literatura tão necessária para se viver nesse tempo de contradições.

Longe das críticas e além das pequenezas, o que veio à superfície foi tão importante, atual e imediato que desafia qualquer discussão bolorenta e recheada de definições. O que a literatura fez, durante toda a Flip 2005, foi provocar a consciência individual de um jeito bem coletivo. Houve, por assim dizer, uma "espalhação" democrática do pensamento humanista dessa virada de século. As pessoas tinham muito a dizer, mas nem tanto sobre si mesmas, seu estilo ou o ofício de escrever. O que conta de fato é o seu papel no mundo. E assim foi-se formando uma massa de enorme consistência, alimentada pelo pacifismo forte e sincero de David Grossman, um olhar totalmente novo e verdadeiramente humanista sobre o conflito entre israelenses e palestinos; pela releitura de Michael Ontadjee das suas raízes e das profundas feridas do seu povo; pelo agudo realismo documentado por MVBill, na busca de uma forma de frear o genocídio de adolescentes pretos, pobres e marcados pelas leis do crime organizado no Brasil; pelo jornalismo apaixonado de John Lee Anderson e Pedro Rosa Mendes, testemunhas da alma destroçada de Bagdá e de Angola; e pela fiel reprodução que Salman Rushdie fez do que havia de belo e amoroso num mundo hoje extinto, a Caxemira de sua infância.

Lado a lado com a criação literária e intimamente imbricado nela está o ato de viver, viver no mundo. E uma coisa alimenta a outra. Se Clarice Lispector não cabia no mundo dentro de si, se Machado de Assis explicava o mundo na voz seus personagens, e se a literatura também pode falar de algo externo à vivência pessoal, mas dá voz a um registro da condição humana (ou desumana), ela vive na eterna busca por traduzir, transformar e tentar solucionar o mundo. E tudo acaba - ou começa - na mesma reflexão: o que eu posso ajudar a mudar, enquanto produtor ou consumidor de literatura?

O tempo todo, em Parati - enquanto assistia às mesas e recebia essas informações, entre surpresa, emocionada e muitas vezes indignada, ou enquanto caminhava entre as ruelas seculares tentando capturar frestas de passado - essas questões me assaltavam. Reorganizava-me por dentro a partir de todas as novas referências, olhares e leituras da dor do instante presente em toda parte, que funde numa mesma panela os garotos das favelas brasileiras, soldados e crianças na faixa de Gaza, idosos e mulheres nas ruas de Bagdá, mutilados e sobreviventes em Angola.

Mànya Millen tem muita razão e muita clareza. A mescla entre vida literária e vida real, na Flip, foi a grande "produção" do encontro. Produção de consciência e de movimentos que, embora aparentemente pequenos, são definitivos na nossa construção diária do mundo. Sinto-me como que acordando, entre os pequenos e sublimes prazeres de um bom texto e o gravíssimo e convulso acontecer da vida que nos demanda, cada vez mais, ações concretas para operar, ainda que em ínfima escala, as transformações que são, assim como as palavras, muito necessárias para o hoje e o amanhã.

O mundo é pequeno, mas o Alentejo é muito grande

(da série "Tratado das Letras de Parati")

Palavra de bom português: José Luís Peixoto acredita mesmo no romance. É dele a frase que dá título a este artigo, e que na verdade veio em resposta a uma pergunta: alguém queria saber no que o Alentejo dele era diferente do Alentejo de Saramago. A resposta sintetiza o poder do romance: um mesmo lugar pequeno, povoado de histórias de aldeia, pode dar livros e livros os mais diferentes, de acordo com aquilo que desperta no escritor. Assim a mesma história, contada de outra maneira, torna-se uma outra história.
O paranaense Cristóvão Tezza, que dividiu com Peixoto e Beatriz Bracher a primeira sessão da Flip 2004, "A força do romance", acha que a vida do romance está justamente no fato de que ele não abarca uma "totalidade", mas apresenta um olhar sobre o mundo. O romance narra - e, enquanto houver linguagem, haverá narrativa.
A paulista Beatriz Bracher pondera que o romance só existe quando é lido, assim como qualquer obra de arte só existe no momento em que é percebida. Mas tem um diferencial: fica mais tempo com o leitor. Ele exige uma lentidão, que é justamente onde reside a sua força. Os contos são mais rápidos...
Para José Luís Peixoto, enquanto o mundo for mundo haverá romances. E mesmo os antigos são sempre novos, já que são lidos todos os dias de maneira diferente por leitores que pensam diferente, e assim os vão transformando. - Os leitores acabam sendo os próprios criadores. E uma das grandes riquezas de um texto de ficção é oferecer-se aos outros, enquanto referência e enquanto informação que será processada.
E quais seriam os compromissos da ficção com a realidade do mundo? No aspecto político, José Luís Peixoto sorri e sente-se livre de qualquer obrigação com relação à ditadura de Salazar, já que nasceu em 1974, portanto depois que acabou. - É sempre importante aproveitar a literatura dos que me precederam, porém para criar caminhos individuais. A grande verdade é que tudo nos influencia, de um modo ou de outro; mas é bom não ter obrigação de me posicionar sobre um regime que não conheci. Do ponto de vista da literatura em si, do estilo e da tendência, sinto-me tentado a ir beber justamente nas fontes que são consideradas "fora de moda"; afinal, o romance precisa de muitos estilos...
Beatriz Bracher reforça um outro lado importantíssimo da literatura de ficção: sua influência na educação, por ser o grande palco das experimentações que geram a "posse" das palavras. Só desse exercício saem estilos próprios, formas de expressão individualizadas, não da leitura permanente de jornais e outros textos distantes da ficção. - A literatura ensina a gente a contar histórias e a encontrar o nosso ponto de vista - lembra. Embora, como pondera Cristóvão Tezza, não se enquadre no uso pragmático justamente por ser a única expressão não oficial.
Mas com tudo isso, será que as pessoas lêem menos romances? Cristóvão acha que não. - O que se observa é que as pessoas lêem menos, ponto. Essa é a crise que merece ser combatida, pois a palavra escrita é fundamental como eixo civilizatório e identidade.
Longa vida, pois, ao romance. Em qualquer tempo e lugar, as grandes histórias e suas mágicas palavras serão sempre as primeiras a cativar um aprendiz de leitor.

quinta-feira, julho 14, 2005

Dois homens turcos em um

(da série "Tratado das Letras de Parati")

Olho para ele e me lembro dos altivos beduínos do deserto, com os quais um preciso Malba Tahan povoou a minha infância. Ao lado de Monteiro Lobato, o grande professor Mello & Sousa, disfarçado de árabe, foi um dos autores que mais sedução e magia trouxeram à minha vida de criança sempre mais contemplativa do que afeta ao ar livre.

De fato, Orham Pamuk encarna muito bem o beduíno da minha imaginação; alto e esguio, moreno, olhos verdes, expressão distante e concentrada. E que nos dois encontros com o público transfigurou-se em dois personagens quase completamente distintos um do outro.

O primeiro deles estava tenso diante das "1001 Noites" e falou de sua relação atormentada com essa obra que exerce intenso e igual fascínio sobre orientais e ocidentais. Na primeira leitura, aos sete anos, teve medo; na segunda, aos vinte e poucos, ficou incomodadíssimo com o caráter duvidoso das mulheres das histórias e, embora tenha gostado do livro, não aceitou esse fato e ficou ressentido consigo mesmo! Na terceira, finalmente, sentiu-se influenciado pela magia das tramas e pela qualidade do texto, que virou uma contínua fonte de prazer e inspiração. À medida que falava do caldo de culturas que formou a obra, das várias versões nascidas na oralidade e da multiplicidade de autores, desvendava a história da história: não se sabe até que ponto as "1001 Noites" seria uma obra totalmente oriental. Publicado pela primeira vez numa compilação organizada por um autor francês, o livro dito "original" só mais tarde viria a incorporar contos como "Ali Babá" e "Aladin". E a estética se transformaria, também, nas sucessivas edições.

No segundo encontro surge um Pamuk espirituoso, engraçado e falante. É talvez o único autor que se sente influenciado pelas capas de livros que não leu, e mesmo não os tendo lido tem ciúme de seu conteúdo, "porque devem ter sido escritos por alguém com uma vida bem melhor que a minha".

- Quando não consigo escrever vou para uma livraria e fico por lá, procurando alguma coisa que nem eu mesmo sei o que é. De repente pego um livro, olho para a capa dele e isso me influencia! É verdade! E que inveja sinto de quem o escreveu! Depois vou para casa, escrevo, escrevo, escrevo... e volto para comprar justamente aquele livro, porque acredito que o autor deve ter dito alguma coisa importante. Aí leio e o conteúdo também me influencia!

Seu romance "Meu nome é vermelho" é uma história de mistério que versa sobre um pintor que cria iluminuras perfeitas. Pamuk, na verdade, chegou a se iniciar nos pincéis e tintas. - Não sei por que parei de pintar. Escrevi um livro inteiro (o autobiográfico "Istambul") só para explicar isso para mim mesmo.

Escrever, para um alegre e já totalmente descontraído Pamuk, tem a ver com lembrar e continuar a lembrar. E acrescentar cada vez mais, sempre e abundantemente, até que chega o dia de fazer o caminho de volta e cortar passagens.

Entre sorrisos largos e uma ou outra pitada do humor mais fino, Pamuk já domina a paisagem feito um tuaregue ondulando ao vento. Como Faulkner, sua maior referência, dá voz a objetos e deixa o romance se auto-inventar, em suas próprias palavras.

Os dois Pamuk, afinal, se combinam na melhor tradição árabe: magia e fé, sonhos que brotam como miragens do mais vasto deserto da alma e se transformam em palavras que contam histórias sem fim.

quarta-feira, julho 13, 2005

Rimas de ordem

(da série "Tratado das Letras de Parati")

Confesso que conheço pouco da estética hip hop, ainda que tenha em casa uma filha e uma sobrinha adolescentes e tenha encontrado, em muitos dos festivais de dança que participo, trabalhos interessantes ao som desse ritmo vibrante e identificado com movimentos voltados para a inclusão.
Mas desde Parati uma história de hip hop tem estado dentro de mim, insistente.
Imagine milhares de adesivos para carro, todos absolutamente políticos e infinitamente diversos em intenção e gesto; falam de paz, violência, racismo, homofobia, revolta, felicidade, amizade, arbitrariedade, segregação e tudo o mais que você pensar. Agora pense numa letra de hip hop que junte tudo isso com algum sentido e, ainda por cima, com rimas - tudo para formar o retrato de um tempo agressivo e triste na história de um país.
Pois foi isso, justamente, o que fez o escritor israelense David Grossman, em colaboração com um dos mais importantes grupos de hip hop de sua terra.
Quanto mais de maldade você consegue engolir?, diz o refrão da Canção do Adesivo, como é mais conhecida. A pergunta cabe. É crucial e tristemente atual, tanto em Jerusalém como aqui. A bela embalagem musical, releitura atualizada dos ritmos tradicionais, não esconde o tom rasgado do texto, as palavras de ordem, as causas desencontradas.
Logo após o assassinato de Itzhak Rabin, David Grossman viu um homem tentando arrancar, com uma furadeira, um adesivo pregado num carro, que dizia: "Rabin é assassino". Foi aí que "bateu" a idéia de juntar todo aquele quebra-cabeça.
Com uma clareza e coração aberto impressionantes, Grossman cumpre o firme propósito de se tornar uma voz no encalço da arbitrariedade e na direção de um diálogo ampliado, um diagnóstico mais fundo do ambiente de conflito em que vive. E o hip hop é parte disso. Tanto que foi escolhido pela organização da Flip como a trilha sonora final da festa, após a última sessão, no domingo. Um recado para quem se confrontou, durante cinco dias, com o bom, o belo e o trágico nas diferenças além dos livros, que massacram grande parte do mundo. Um dos temas dominantes, aliás, do encontro - esmiuçado, além de David, como jornalista que vive em Jerusalém o cotidiano do conflito entre árabes e israelenses, por MVBill e Luiz Eduardo Soares, em cima do trabalho com os jovens das favelas dominadas pelo tráfico, e por John Lee Anderson e Pedro Rosa Mendes, jornalistas que cobriram Bagdá e a guerra de Angola, respectivamente.
Acabo cruzando mais uma vez com David Grossman na pontezinha que separa a Flip do centro histórico de Parati, e pergunto como se pode conseguir o CD. "Pela Internet", diz, no meio do aperto de mão. "Mas o que se deve procurar?", auxilia um jornalista que o acompanha. "O nome é 'Hadag Nahash", diz David. (Repito algumas vezes em voz alta). "Se você conseguir se lembrar disso, vai encontrar."
Repito foneticamente as palavras por todo o caminho até a pousada, onde breve pegarei minha bagagem para retornar ao Rio. Ao chegar, grafo-as no meu indefectível caderno de notas, para não esquecer. E debato-me durante parte da segunda-feira por não saber seu significado, até que o milagre da Internet desvenda tudo. E descubro que este é o nome da banda, e não da canção, como pensara. A música aparece cristalina num site do grupo, assim como uma tradução da letra e até o vídeo-clipe. Ah, e Hadag-Nahash, segundo a tradução do Google, significa "peixe-cobra", embora eu não saiba direito o que possa ser isso.
Ouvi-la tornou-se um ritual de lembrança, um reforço da marca de doçura e firmeza que envolve o olhar de David sobre a responsabilidade humana diante do conflito - o seu específico e o de cada um de nós. A responsabilidade absoluta, de cada um, de se colocar no lugar do outro, ainda que esse outro seja o seu inimigo. E combater o arbítrio dia após dia, com as armas da clareza e da humanidade.

terça-feira, julho 12, 2005

Tratado das Letras de Parati

Primeira providência na friusca manhã de quinta-feira, 7 de julho; comprar um guarda-chuva - o maior possível, pois o tempo trai - e um caderno onde guardar a memória.
Ainda não sei bem que tipo de caderno vou querer, mas precisa ter capa dura e caber na bolsa. Enfim, algo prático e até meio de época, nesse tempo de palmtops e laptops.
A vendedora me indica uma ala no fundo da loja. Percorro as prateleiras e dedico toda minha atenção à escolha do exemplar perfeito. Toda a vida preferi aqueles de lombada, elegantes, sóbrios, mas ultimamente ando com o pé atrás; meu fiel "amarelinho", companheiro de tantas intimidades, foi desmontado por uma sobrinha, na tentativa de arrancar-lhe folhas! Então volto-me para os espirais e, após alguma deliberação, decido-me por um que atende pelo sugestivo nome de Happy Sports, com fotos de esportes radicais na capa consistente e uma espiral azul que confiei não fosse se soltar ou machucar meus dedos.
Depois, e só depois de o caderno bem guardado na bolsa, é que me deparo com os guarda-chuvas e escolho um enorme, axadrezado em estilo inglês, que decerto me defenderá das agruras do tempo. Na véspera, uma chuva implicante após o show de Paulinho da Viola me obrigara a cruzar na intempérie os poucos metros que me separam da pousada. Poucos, sem dúvida, em tempo firme; mas com chuva...
Sigo solene para minha primeira mesa, ou palestra, ou sessão, ou conferência. E a ansiedade por esse encontro com o novo, no espaço familiar da Tenda dos Autores, é bem parecida com a que me acometeu no ano anterior.
Após a mesma fila, encontro um ótimo lugar bem em frente ao palco que se chama mesa, emoldurado por uma Parati naif pintada ao fundo. Enquanto espero ao som de bossa-nova e às vezes Burt Bacharach, abro o caderno, busco a caneta, ligo os sentidos e a aventura começa, preenchendo minha cabeça e as páginas do caderno quase na mesma velocidade. Não que eu tenha sido, ao longo da vida, uma anotadora compulsiva; ao contrário, confesso que até desprezava um pouco essa prática. Mas como saber a festa pedra por pedra, para retratá-la aqui no blog? Rendo-me, e acabo tornando esse caderno quase uma parte de mim.
Com um fervor que eu própria desconhecia, passo a abrir o ilustre confidente e nele registrar velozmente as mais belas, as mais íntimas e até as mais duvidosas declarações, fragmentos de memória, excentricidades, trejeitos transformados em palavras. Interesso-me por todos os autores indiscriminadamente, os mais brilhantes e os acuados, os falantes e os tímidos, os envolventes, fascinantes, distantes, belos ou menos belos. E o caderno recebe tudo quanto é idéia, verdades ou não em ampla dose, diletantismos, aforismos, figuras de linguagem. É aberto cinco vezes sem falta a cada dia e fechado, para dormir, na hora do aplauso final. Mas fica comigo, ao lado do corpo, na pele da bolsa, e me faz rir pensando-o igual ao "caderninho" que Erasmo Carlos escreveu e Ronnie Von imortalizou: "eu queria ser o seu caderninho, pra poder ficar juntinho de você..." Não sei se ele, o caderno, concordaria, mas para mim é meio igual. Um caderno, um cofre-forte com as preciosidades que vou recolhendo bem preservadinhas, na minha escrita o menos taquigráfica possível, pois gosto mesmo é de ver as frases inteiras e ainda por cima não sou taquígrafa. O grande bem que guardo da pré-história administrativa é, sem dúvida, a capacidade de datilografar com os dez dedos e muito agilmente, mesmo tendo sido reprovada no curso do SENAC, há mais ou menos meio milênio atrás.
Houve momentos em que temi pelo fim do caderno antes do fim das sessões (como faria com dois cadernos?), mas com o evento para mais da metade convenço-me de que vai dar, e então terei tudo num só lugar.
De fato, é o que acontece. Das 96 folhas originais sobraram 16, o que significa que tenho nas mãos uma verdadeira volta à FLIP em 80 folhas, 160 páginas, mais de uma caneta de tinta e mais que o mundo de vastas intensidades.
São estas intensidades que derramarei a cada dia sobre este blog, para livrar minha alma da força das águas que a engolfam presentemente, e para trazer a todos os que me lêem um pouco do muito que senti, nesses parcos e loucos cinco dias literários.

segunda-feira, julho 11, 2005

Aral

Certas urgências são grandes.
E novas, estranhas.
Debruço-me sobre tantas folhas
de pensamento lançadas
e fervo.

Convulsões me embaralham.
Mal consigo catar os órgãos
todos alvoroçados,
enfunados no corpo,
sem tino.

Difícil olhar de frente
os dias, noites, arrepios
de tempo guardado,
revisitado,
desbotamento de chuva fina.

Ventos se desviam
nos intervalos das pedras,
as roladas e as outras,
enquanto varo por entre casas longas,
encompridadas na noite.

Quero saber tanto
o que tanto me incomoda
e faz faltar espaço ao estômago
quimicamente oscilante,
faz o ar virar lágrima
que escala a pele
e entra de novo na alma,
ah, tanto estrago.

Quero saber dos olhos outros,
prismas, acordes,
pancadas na fronte
da chuva que vem, vai,
vem, vai
e se instila
no centro das dores.
No que falta, no que é
e no que nasce.

Rochoso, salgado
e cristalinamente
próximo.

domingo, julho 03, 2005

Muito depois da raiva, os assuntos estão de volta

... bem, a raiva passou, claro. Os assuntos, acumulados uns por sobre os outros, me repreendem e clamam por liberdade: querem o espaço que lhes é de direito no blogue nosso de cada dia. Concordo: afinal, seria impossível mantê-los quietos por mais tempo, no claustrofóbico cômodo a que foram involuntária e subitamente confinados.

Domingo, 26 de junho: muito trabalho numa nova tradução, desta vez um manual de ações de voluntariado. Traduzir é um grande prazer para mim - ser a única responsável por decifrar, para muita gente, os códigos mentais do autor, respeitando seu estilo num idioma que é pensado diferente do seu, antes mesmo de ser escrito. Adoro esse desafio, esse garimpo constante pelas palavras, expressões e formas que cumpram essa missão. Após dezenas de livros, partes de uma enciclopédia, artigos e contos, sinto-me cada vez mais à-vontade e feliz como tradutora. Depois de escrever, é o que mais gosto de fazer na vida!
Bem, nem só de trabalho, afinal, viveu o domingo: levei meu sobrinho André Luiz para ver "Madagascar", o tão esperado desenho da Pixar. Confesso que me diverti além da pipoca e do refrigerante; se Woody Allen tivesse feito um desenho, certamente seria este. E o leão Alex, personagem principal da história e rei do zoo de Nova York, seria o Woody Allen! Onde já se viu bichos de zoológico que odeiam selva, natureza, cadeia alimentar, essas coisas?
Bem, há muitas situações engraçadas, detalhes pitorescos e referências, toneladas delas. O que faz com que se divirtam mais aqueles que as conhecem. As crianças curtem, não ligam, mas nesse aspecto perdem. Na abertura quase psicanalítica (se é que a psicanálise explica algo sobre animais ditos irracionais), a zebra Marvin tem um sonho recorrente: está correndo por uma vasta campina com um lago e montanhas ao fundo. E é perseguida pelo leão Alex, seu melhor amigo! E ao som de... adivinha??? Nada menos do que a gravação original (com coro e tudo) de Born Free, tema do filme "A história de Elsa", clássico sobre uma leoazinha devolvida ao seu habitat. A garotada, é claro, dançou nessa.
De resto, a trama é engraçadinha, com as confusões que a bicharada arruma nos costados d'África, ao encontrar um bando de lêmures enlouquecidos. De todos os personagens, os mais interessantes são os pingüins fugitivos, que chegam a seqüestrar um navio. "Madagascar", longe de ser uma obra-prima, é divertido e prende a atenção. Pena que a tecnologia da animação por computador ainda pareça primária aos olhos de quem cresceu vendo os movimentos perfeitos criados manualmente por Walt Disney e sua equipe. Mesmo assim, vale a visita!

Segunda, 27 de junho: tinha uma reunião de trabalho com o grupo de cultura que estou ajudando a fundar, o ConceituArttis. Mas tomei bolo de quase todos. Um esqueceu, a outra estava atendendo um cliente, a terceira teve crise renal... o jeito foi cancelar e ir pra casa assistir C.S.I., a nova coqueluche lá em casa.
A série C.S.I. (sigla de Crime Scene Investigation) é positivamente um excelente produto. Em três versões (C.S.I., C.S.I. Miami e C.S.I. New York), trata sempre de um crime e da investigação que a equipe da Perícia faz a partir da cena do crime. Tem inteligência, lógica, tecnologia, efeitos, elencos pra lá de ótimos, tramas baseadas em casos reais e personagem que estão longe de ser perfeitos, mas que batalham até chegar a um resultado. Para ficar melhor ainda, às vezes não chegam. Não concluem, não conseguem prender um criminoso, erram como qualquer um. C.S.I. é tão interessante que Quentin Tarantino quis dirigir o capítulo final da série, que foi ao ar no último dia 29, com duas horas de duração. Não pude assistir, mas minha filha ficou ligadíssima e comentou: "Mãe, foi siniiiiistro!!!!"

Terça, 28 de junho: Dia de quase gritar de felicidade após assistir "Batman Begins". Trata-se de uma homenagem no mínimo comovente do diretor Christopher Nolan ao personagem original de quadrinhos concebidos para adultos, com tema adulto e reflexão madura. O Bruce Wayne de Batman Begins não tem nada das historinhas pasteurizadas que assitimos na infância, com seus BANG! POW! e CATCH! explodindo na tela. É retratado em toda sua dor, revolta e amargura. Sente-se culpado pela morte dos pais, assassinados na sua frente numa cidade violenta e destruída pela corrupção. A Gotham de Bruce Wayne poderia, sem medo de errar, ser comparada a qualquer grande cidade do mundo de hoje, imersa em problemas, refém da violenta e palco de uma impunidade quase generalizada.
Após passar quase uma vida treinando para se vingar, Bruce Wayne retorna à casa e se depara com uma Gotham ainda pior do que deixara. E resolve agir à sua maneira, já que não pode contar com o poder constituído. Para isso se transforma num Morcego, "porque me dá medo", revela.
Longe do estereótipo do justiceiro, o personagem que confunde e surpreende o crime organizado da cidade age alimentado pela raiva, mas não cegamente. Cumpre uma dolorosa lógica interna para defender Gotham e se livrar dos criminosos, com a ajuda de Alfred, o mordomo que o criou, de Lucius Fox, um adorável cientista meio louco que trabalha nas empresas de Bruce, responsável por todas as gadgets adotadas pelo Batman, e do quase sempre atordoado comissário Gordon, praticamente o único que não se deixou levar pela onda de corrupção.
A estética é perfeita: a tela grande se transforma no maior álbum de quadrinhos do mundo, que não cansamos de folhear. As imagens são fortes, belas, uma profusão de claro-escuros que reproduzem desenhos hiper-realistas. A luz é fantástica, a trilha sonora impecável, o ritmo intenso. Os atores, todo o grande time mobilizado para a luxuosa produção, não poderiam estar melhores. Christian Bale captou como ninguém a alma atormentada de Bruce Wayne. Michael Caine, sempre grandioso, não poderia estar melhor como o zelozo mordomo Alfred. E Morgan Freeman, e Gary Oldman, e Tom Wilkinson, e Rutger Hauer (belo como sempre), e Katie Holmes (revelada pelo ótimo seriado Dawson's Creek, também segura a onda e não faz feio de modo nenhum).
Batman Begins é um presente. E espero que, como o nome sugere, possa ser apenas o começo de uma série que nos devolva o personagem com suas cores verdadeiras, não só para nosso próprio deleite, mas também como uma reflexão que nos ajude a reconstruir de fato alguma coisa para as novas gerações. Sim, porque o Batman que nos chega agora não legitima as paranóias bushianas que trancafiam nossos sonhos; muitíssimo ao contrário, ele busca a cura para si mesmo e para os outros, admitindo a dor do mundo mas permitindo, cada vez mais, que a sanidade ocupe o lugar da devastação.

Quarta, 29 de junho: Fui ao Rio e fiz os exames para uma cirurgia de vista. Já decidi que vou tirar os óculos, e os prognósticos são os melhores. Creio que na próxima semana - quer dizer, pós-FLIP, onde estarei de 6 a 10 de julho - operarei a primeira vista (o intervalo entre as duas é de mais ou menos dez dias). Estou cheia de coragem e com vontade de poder fazer, de novo, um traço no olho sozinha, sem borrar!
À tarde assisti ao delicioso filme "Inconscientes", do diretor espanhol Joaquín Oristrell. A bem-humorada sátira da psicanálise tem uma trama extremamente criativa, além da beleza dos figurinos e da ambientação de época. Os atores são um capítulo à parte, que sem dúvida traduz a força de um cinema espanhol cada vez mais contemporâneo.
De noite, me esperava o Momix, num Theatro Municipal ultra-lotado. Da última fila do balcão simples, em que pese perder a visão da metade superior do palco, assisti ao belo "Lunar", mais uma demonstração de que o Momix sempre surpreende. Entramos literalmente no clima do espaço sideral, com seus sons e sensações, acentuados por eficientes projeções de formas, crateras, mares e desertos lunares. O uso da luz estroboscópica sobre roupas metade brancas, metade pretas, deu aos bailarinos oportunidade de criar mil movimentos, sempre em dupla mas como se fossem um. Ao contrário do que pensa um nobre amigo meu, que torce o nariz para o Momix porque "eles fazem tudo para esconder os bailarinos", em "Lunar" o jogo de esconde-esconde é, na verdade, muito revelador: os movimentos são tão perfeitos, suaves e bem desenhados que a gente reconhece, de pronto, a absoluta qualidade dois bailarinos.
E que bailarinos! Sucedem-se em outras situações, outros figurinos e propostas distintas - como as moças de maiôzinho verde-limão, que se movimentam sobre imensas bolas pretas e traçam no ar saltos e delicadezas quase intangíveis, ou os duos e trios "radiografados" por coloridas luzes iridescentes, que lhes conferem um aspecto semi-fantasmagórico, quase como "plasmas" no espaço.
As aranhas, porém, são talvez o momento mais fascinante. Nessa hora, concordo, nada se vê além dos tentáculos estilizados no palco, e o aspecto inexorável da sobrevivência na cadeia alimentar: o animal maior devora a sua presa diante de todos, mas em seguida se metamorfoseia numa imensa rosácea que se projeta e cresce no palco, pontilhando a bela trilha musical, e confere um certo êxtase ao final do espetáculo.
Final? Não sei, não. O agradecimento dos bailarinos, agora desnudados em suas formas trabalhadas e vestindo apenas exíguos trajes de banho, é um espetáculo à parte. Todos reproduzem seus melhores movimentos a olho nu diante da platéia e são acolhidos com o merecido e tradicional calor da nossa exigente platéia. O Momix é tão querido dos cariocas que já virou uma espécie de patrimônio! Um mar de aplausos, e não o mar da lua, envolveu os dez artistas num clima bem mais ameno que as temperaturas que enfrentaram, no solitário espaço, para produzir este fascinante espetáculo.

Quinta, 30 de junho: Dormi pouco, viajei de volta bem cedo de manhã, e o dia é cheio. Daqui a um mês darei por encerrada minha trajetória profissional na empresa em que trabalho, aposentada. E vou me dedicar, decididamente, à cultura. Nos planos estão um MBA em gestão cultural e um curso de empreendedorismo na PUC do Rio. Enquanto construo adequadamente essa passagem, envolvo-me de corpo e alma nos processos de comunicação que estou concluindo. E preparo-me para os altos e baixos que certamente enfrentarei, a despeito de minha escolha consciente. Vou para casa relativamente cedo e reencontro meus filmes e séries na tv a cabo, mas cochilar é inevitável.

Sexta, 1º de julho: Compro o último ingresso que me faltava para a FLIP 2005: o do show de abertura, com o amado Paulinho da Viola. Paulinho é para mim uma certeza, um prazenteiro conforto, o sorriso que é quase um abraço, símbolo do equilíbrio, da resistência da verdadeira cultura brasileira. Amo Paulinho com um coração quase tão azul como a Portela que passou em sua vida! Tenho por ele um respeito que beira a reverência. Aliás, assitir ao documentário "Meu tempo é agora", da Isabel Jaguaribe, com roteiro e entrevistas de Zuenir Ventura, só fez aumentar esse respeito e o orgulho de fazer parte deste "agora", de ter a chance de viver na mesma época que esse grande brasileiro.
Nesse mesmo dia, aporta no SESC de Barra Mansa, minha cidade, o show "40 anos de Jovem Guarda", com Wanderléa, Erasmo Carlos, os Golden Boys e os Fevers. O lado meu que curtia toda essa turma em 66, 67, não resistiu: lá fui eu em clima de "recordar é viver". E me deparei com um anfiteatro absolutamente lotado. Praticamente a minha geração inteira de conterrâneos, colegas de escola, amigos de domingueiras e "brincadeiras" (é como se chamavam os bailinhos da minha época), marcou presença.
O incrível é constatar que sabemos cantar praticamente todas as músicas que há anos não ouvimos. O computador mental do ser humano é tecnologia divina de altíssima qualidade; vai lá no fundo e busca as letras inteirinhas, que jorram automaticamente sem sequer a gente se dar conta!
O show começa com os Fevers, que depois continuam no palco acompanhando todo mundo; Golden Boys, Wanderléa (melhor e mais bonita do que nunca) e, por fim, o Tremendão Erasmo Carlos. Sua entrada, concebida para ser um delírio, é na verdade motivo de preocupação; passos incertos, rosto muito inchado e a pele de uma coloração pouco saudável, Erasmo inspira cuidados. Relembra seus grandes sucessos - "Gatinha manhosa", "Sentado à beira do caminho" e muitos outros - com a providencial ajuda dos Golden Boys e de Wanderléa (aliás, protagonista do momento mais emocionante da noite, ao ajoelhar-se na beira do palco para abraçar uma senhora idosa, enquanto uma platéia comovida entoava, muito afinada, a canção "Agora você vem dizendo adeus" que ficou inacabada, como que a consolá-la e embalá-la).
A grande beleza da noite ficou, na verdade, por conta da platéia. A disposição e o entusiasmo de comunicar-se com artistas queridos e ressuscitar uma alegria juvenil há muito guardada no peito foi um ato coletivo de coragem. Parece que a saudade de um tempo bom, a força de uma juventude duramente castigada pelos negros tempos de censura e repressão, a energia de quem sabe que pode mudar o mundo, tudo isso esteve por muito tempo sufocado nos corações de tantos homens e mulheres que construíram suas vidas, foram à luta, formaram família, criaram seus filhos. E que de repente, num ritual coletivo, encontraram nesse show o espaço para libertar todas as emoções de anos e anos, marcadas por músicas que os ajudaram a sobreviver durante uma das fases mais difíceis da nossa formação. A catarse coletiva traduzida com doçura surpreendeu e comoveu os próprios artistas, que a receberam como uma verdadeira carta de amor cantada em alto e bom som, o tempo inteiro, até o acorde final da guitarra do célebre e sempre talentoso Miguel Ângelo, dos Fevers.

Sábado, 2 de julho: o Ballet de Câmara, um dos amores da minha vida, ressuscita sempre. Estamos remontando o espetáculo "Quarteto", talvez a melhor síntese da trajetória desenhada pelo diretor artístico Antonio Bento para a companhia. Juntos há oito anos nessa empreitada, Antonio e eu já passamos por poucas e boas ao lado dos bailarinos: o grupo, que começou numa academia hoje extinta, não conta mais com uma sede para trabalhar. Por isso, passei o sábado correndo atrás de uma sala de ensaios, fundamental para seguirmos em frente. Ainda não consegui, mas na manhã de segunda prossigo em minha busca. No minuto final, sempre demos sorte; por que há de ser diferente agora? Respiro fundo, acalmo-me e aguardo até amanhã, confiando sempre na boa estrela da companhia.

Domingo, 3 de julho: Sinto-me estranhamente feliz após conseguir colocar este blogue em dia. Principalmente depois de ter assistido, de manhã, ao show dos 90 anos do palhaço Carequinha, uma das grandes alegrias da minha infância.
Carequinha era o rei da garotada na TV Tupi, quando eu era criança. Cresci assistindo aos seus programas. Além dele havia o Fred, hoje falecido, e o Meio-Quilo, um anão que engatinhava sentado por todo o palco (aliás, minha irmã do meio, Lenita, quando pequena, engatinhava igualzinho a ele). Carequinha faz parte de uma geração de belos e inocentes palhaços, que encarnavam uma alegria pura, poética, infantil mesmo. Ainda me lembro do Piolim, grande pioneiro, e do Arrelia, falecido recentemente, além de uma gama de outros, desconhecidos, personagens dos circos mambembes que circulavam pelo interior. A figura do palhaço tem seu quê de poesia e de tragédia, de emoção que se alterna com alegria. Mas Carequinha, o maior, o mais próximo, o mais querido, tem lugar cativo no meu coração. Então assumi a criança que mora em mim e sentei na platéia, ao lado de um sem-número de crianças, pais, mães e avós. Em casa, antes de sair, agüentei firme as gozações da família. E daí? De quem é o sonho?
Começa o espetáculo, com números de ventriloquismo, malabarismo, contorcionismo (sim, isso mesmo!) e boas palhaçadas. Eis que surge o Carequinha, com seu microfone, suas musiquinhas e a mesma voz de sempre, muito firme a despeito da idade. As lágrimas escorrem e vejo que, de menina, não mudei muito. Continuo a ter fé nas pessoas, a ver a honesta beleza de alguém que desperta e conquista o carinho de crianças de qualquer geração. Apesar dos desenhos japoneses, das Xuxas e Angélicas, lá estavam no SESC muitas crianças moderninhas, e no entanto absolutamente seduzidas pelo bom e velho Carequinha!
Penso no que há de belo e trágico na máscara do palhaço. No sorriso projetado e nos olhos que, mesmo anciãos, guardam o mesmo brilho, a mesma vontade, a mesma alma de artista. Penso no que há de grande em alguém como o Carequinha, que não desiste em seu traje de lamê colorido, na grande gola que ele mexe com os ombros, na bem-cuidada maquiagem, no chapéu e na expressão que tanta gente aprendeu a amar. E agradeço por estar ali, guardando seus 90 anos como um presente reservado a mim, unicamente a mim, há tantos anos, e só agora entregue.
Subimos no palco ao final, eu e a menina que sempre fui. E peço ao fotógrafo que o SESC contratou: "Bate uma foto minha com o Carequinha?" Da primeira vez, entro com todo mundo, já que ninguém quer mesmo sair de perto dele; mas resolvo ficar até o final e, depois que todas as crianças já saíram, consigo uma exclusiva. E digo a ele, orgulhosamente: "Carequinha, tenho 49 anos e sou sua fã desde pequenininha!" Ganho um abraço, um sorriso - e uma dádiva para sempre, eternizada na foto que certamente viverá num porta-retrato, com toda a pompa e circunstância, no melhor lugar que eu conseguir encontrar para ela.

sábado, julho 02, 2005

Raiva

Estou com muita raiva. Minha filha acaba de apagar duas páginas de texto que eu pretendia postar exatamente agora. Por mera distração, descaso, falta de compromisso, sei lá: o fato é que, por uma obsessão por essa maldição chamada "MSN", lá se foi o trabalho de mais de uma hora, minhas reflexões da semana.
É uma espécie de roubo: alguns tesouros que, mesmo pequenos, seriam transportados da alma para o ciberespaço (e isso consome tempo, paciência, elaboração), mas de repente somem. Tudo porque confiei e não salvei como rascunho. Pedi apenas que ela não mexesse.
Parece bobagem, escrever a gente escreve tudo de novo. Mas não é: precisa reconectar a via da inspiração, voltar a cada uma daquelas "vidas" que já tinham começo, meio, fim. Para que eu possa estar aqui novamente, com tudo de melhor que posso reunir, preciso realinhavar a alma. Mas não com fios de raiva; as fibras do entusiamo são as únicas que podem dar conta dessa costura.
Enquanto não as encontro de volta, deixo aqui o meu lamento pelas frases que jamais se reconstituirão na forma original, e espero a hora de voltar com tudo.
Sniff.