terça-feira, maio 31, 2005

Maria Aparecida e o Brasil das Bastilhas

Leio, estarrecida, a história de Maria Aparecida Matos, 24 anos, mãe de dois filhos pequenos, doméstica, pobre - que passou um ano e sete meses na cadeia por tentativa de roubo de um condicionador e um shampoo em uma farmácia de São Paulo.
E volto no tempo. Rola o filme da história e revejo "Memórias de um médico", coleção de incríveis 21 volumes de Alexandre Dumas que relata, em detalhes, os cenários pré, durante e pós-Revolução Francesa, que li avidamente em duas etapas de minha vida.
Mesmo um romântico olhar como o de Dumas não poderia deixar passar os fatos jornalísticos da época; a Bastilha, o templo sagrado das injustiças sociais, era a prisão mais temida em toda a França. Lá atiravam-se, indiscriminadamente, ladrões, bandidos, assassinos, loucos, leprosos, tuberculosos, pobres, mendigos, maltrapilhos, falidos... enfim, tudo o que a sociedade desejava, de algum modo, excluir.
Lembro-me particularmente de uma passagem em que uma criança faminta de apenas oito anos era atirada aos calabouços da Bastilha por tentar roubar um pão. Tentar roubar, bem entendido; a criança seguiu faminta para o inexorável destino de exclusão, doença, morte.
Outros tempos, aqueles? Triste é constatar que não. Temos aí Maria Aparecida; segundo a polícia, advogados e juízes, uma "reincidente". Analfabeta e miserável, cometeu, nas palavras de Augusto Nunes na Folha de São Paulo, o pecado da vaidade. E pagou caro: presa, desprovida, apanhou, perdeu um olho e só saiu mesmo por causa da teimosia de uma advogada, Sônia Regina Arrojo e Drigo, vale mencionar - que para isso precisou recorrer, pasmem, ao Tribunal Superior de Justiça e teve seu pleito acolhido pelo ministro Paulo Gallotti.
Só quero fazer coro, indignada, aos jornalistas que estamparam a história em grandes jornais e revistas: enquanto assistimos a um interminável desfilar de escândalos sem solução, corrupção, aviltamento, vergonha e decadência, uma infinidade de Marias Aparecidas, Josés, Joões, Raimundos Nonatos, apodrecem nas Bastilhas que compõem o nosso sistema penitenciário doente terminal. Doente, aliás, caro para ser mantido doente. A julgar pelo investimento já feito, a cura já deveria ter sido alcançada há muito tempo - e teríamos um caminho para a recuperação e reintegração de muitos brasileiros. Não diria todos porque é difícil medir, nas trajetórias pessoais de presos e condenados, sua capacidade, vontade ou perfil para esse tipo de mudança. Mas a maioria, sim, podia estar construindo nova identidade, tentando mais uma vez.
Degradante é a comparação entre Maria Aparecida e Waldomiro Diniz, no exemplo de Augusto Nunes. Degradante, vergonhoso, humilhante é pensar em quantas pessoas vivem dramas semelhantes ao de Maria Aparecida, enquanto redes informatizadas de fraudadores profissionais depauperam o INSS, os Correios e outros tantos órgãos públicos sustentados com sangrias diárias nos já aviltados salários da maioria dos trabalhadores honestos, "brasileiros que não desistem nunca", tão apregoados em belas campanhas promocionais. Enquanto figurões da República driblam o Imposto de Renda melhor do que Garrincha em seus áureos tempos. E enquanto os prisioneiros e vítimas da impunidade não têm a sorte de encontrar uma advogada decente pelo caminho, que se compadeça deles e lute até o fim, no mar sem-fim de iniqüidades de um sistema judiciário perverso, para conseguir-lhes direitos fundamentais, que deveriam ser garantidos por uma Constituição Brasileira que em 1988 todos nós, secundando o Doutor Ulysses Guimarães, juramos respeitar.
Como disse o meu amigo Helton Fraga, grande jornalista, escritor e blogueiro, "desse Brasil eu quero distância."

segunda-feira, maio 30, 2005

Domingo, 29/5 - Arte em jornada quase tripla

A DANÇA QUE NÃO VI...

Confesso-me uma das pessoas realmente felizes com a inelegibilidade do casal de Garotinhos que pseudo-evangeliza nossas vidas há tanto tempo. Mas tenho que admitir: Teatro Municipal a R$ 1 é uma receita milagrosa que fez despencarem de casa, na manhã de ontem, muito mais que as 2.300 pessoas que lotam uma das mais belas casas de espetáculos do nosso país.

Cheguei ao teatro perto das onze da manhã, onde aconteceria o espetáculo "Coreografismos", da Cia. Staccato de Dança, que eu muito queria ver. A fila - que maravilha! - dava uma volta inteira no quarteirão do teatro, mas não me preocupei. Cheguei até o final e ocupei meu lugar. Famílias inteiras se acotovelavam na esperança de, pelo menos, conhecer o teatro. Pessoas de todas as idades, perfis e procedências levantaram cedo e, em muitos casos, empreenderam verdadeiras "viagens" dos bairros afastados até o centro, para curtir esse programa.

De repente, alguém espalha o bizu: já lotou! Não acreditei: afinal, 2.300 lugares, dança contemporânea... sei não, pensei, vale pagar pra ver. Bem, eu paguei, mas não vi: lotação esgotada mesmo, de verdade. Frustrada por não ver a Staccato, não tive remédio senão pegar o metrô e tornar à casa. Mas, no fundo, com uma sensação boa, de que, aqui no Brasil, em se plantando arte, tudo dá mesmo! A resposta da população não segue o padrão óbvio: todos querem o alimento da alma - e, quanto mais apurado, melhor!

E viva!


... E A DANÇA QUE, DE FATO, VI

Às cinco da tarde, volto ao Teatro - dessa vez, com ingresso na mão e certeza de entrar - para ver "A Bela Adormecida", com o balé da casa e adaptação coreográfica do tcheco Jaroslav Slavicky, sobre a imortal coreografia de Marius Petipa.

"A Bela Adormecida" estreou no dia 15 de janeiro de 1890, no Teatro Maryinski de São Petersburgo (a casa do célebre Balé Kirov), com coreografia de Marius Petipa e música de Tchaikovsky. No Teatro Municipal, entre 1919 e 1998, foi apresentado 20 vezes. Esta, portanto, é a temporada da "maioridade" do balé no Brasil.

"O tema é tão poético, tão favorável à inspiração musical, que fiquei seduzido por ele. Escrevi com aquele prazer e aquele calor que são quase sempre garantias de bom resultado", escreveria Piotr Ilich Tchaikovsky à sua protetora Nadeja von Meck no verão russo de 1889, quando dava os últimos retoques na instrumentação da partitura de "A Bela Adormecida" (informação da pág. 11 do programa do balé).

De fato, é poético, e muito. E o nosso Ballet do Teatro Municipal, sem dúvida, está cada vez melhor. Cenários primorosos do mestre Hélio Eichbauer, que sabe com o ninguém confeccionar magia e "iluminar" os palcos brasileiros com sua genialidade, belos figurinos, corpo de baile em forma, ótimos solistas. Ontem, a princesa Aurora e o príncipe Désiré foram vividos por Tereza Augusta e Francisco Timbó, ambos competentes e muito à-vontade um com o outro. Tereza Augusta tem muita graça pessoal, carisma, vivacidade - e, claro, técnica também. Se a Francisco Timbó falta dramaticidade, sobram concentração e técnica perfeita. De todo modo, a alquimia funcionou muito bem.

A interpretação coreográfica de Jaroslav Slavicky, ainda que arrojada, em alguns momentos é desagradável, "dura" demais - e corta os movimentos secamente ao meio, cerceando um pouco os bailarinos. Como isso ocorre quase sempre nas horas em que a música não ajuda, o efeito de quebra se agrava e prejudica um pouco a fluidez.

Destaque para Deborah Ribeiro, no papel da Fada Lilás, Karina Dias, como a Pedra de Brilhante, e Rodrigo Negri, como Pássaro Azul.

Teatro cheio, mil crianças, muito barulho e alegria; os preços populares (os ingressos mais caros, para platéia e balcão nobre, custavam R$ 10) sem dúvida contribuem para devolver ao Municipal um colorido que há muito tempo não se via, e que dá muito gosto de sentir.

TRIUNFO SILENCIOSO

Devo ao meu amigo Fábio de Mello, consagrado coreógrafo e artista múltiplo que faz virar ouro artístico tudo aquilo que toca, o maior presente desse domingo: assistir à peça Triunfo Silencioso, protagonizada por Edwin Luisi e Herson Capri.

Teatro do Espaço SESC, em Copacabana, ingressos esgotadíssimos, consigo meu convite por obra e graça do incansável Fábio, que me disse simplesmente, durante o agradável almoço em sua casa: "Você não pode perder isso." E, mãos à obra, deu alguns telefonemas. Em meia hora, meu lugar estava garantido.

Saí do Teatro Municipal voando como a Fada Lilás de "A Bela Adormecida" e, graças aos préstimos de um excelente taxista, aterrisava no SESC quinze minutos depois. Mas valeu a pena.

A correspondência de dois amigos e sócios numa galeria de arte em São Francisco, Califórnia - um judeu, que permanece nos EUA, e outro alemão, que torna à pátria - é o tema dessa peça que fala, acima de tudo, da humanidade nas pessoas.

Os protagonistas não são personagens idealizados, entes acima do bem e do mal: são pessoas comuns, sujeitas a tudo de céu e de inferno que todo mundo tem dentro de si. E é aí que reside o seu fascínio: são gente como eu, como você, capazes de literalmente qualquer coisa.

Mas como assim, nós "não somos" capazes de qualquer coisa? Somos, sim. Perdoamos de rabo-de-olho, somos incorretos o tempo todo, não esquecemos. Adoramos ver alguém levar um tombo, temos prazer de sujar a roupa nova da prima chata. E destruímos também.

Max, o judeu, toma conta dos negócios da dupla nos EUA, que vão de vento em pôpa. Martin, o alemão, que adora se comportar como rico e privar da companhia de pessoas importantes, resolve educar seus cinco filhos na Alemanha e se deixa seduzir pela aventura hitlerista. Muda. O que antes era terna amizade entre dois grandes companheiros transforma-se em fria relação comercial. Martin, nos quadros do governo, teme ser prejudicado por ter um amigo judeu, de quem confessa gostar "apesar da sua raça".

Max tem uma irmã, jovem atriz que, no passado, se envolvera com Martin e que, agora (é 1933) está atuando com sucesso na Alemanha. O irmão, aflito com a crescente perseguição aos judeus, confia-a ao amigo Martin - que, para preservar sua posição social, deixa-a morrer nas mãos da SS, praticamente na porta de sua imponente residência.

"Eu mesmo cuidei do enterro", escreve Martin a Max. "Mas, como você mesmo disse, era ela muito tola..."

A essa altura, eu esperava o triunfo da relação opressor-oprimido: um onipotente e prestigioso nazista, no auge da Alemanha hitlerista pré-Segunda Guerra, tripudia sobre o indefeso e agora inconveniente amigo judeu, que afinal está muito longe, na América, nada pode fazer...

Ledo engano. Aliás, ledíssimo. Max vira o jogo com uma arma terrível, quase nuclear: cartas comprometedoras. "Querido Martin, Vovó Rivka vai completar cem anos - Mahzeltov! Você não vai passar um telegrama?"; "É pena que você não pode vir pra festa. Sabem quem vai estar lá? O tio Schlomo!"; "Prima Ruth teve um bebê de quatro quilos! É lindo! Tia Sarah acha que você pode estar magoado com alguma coisa. Nem agradeceu os presentes todos que enviamos!"...

É a vez de o desesperado Martin - separado de Max por um engenhoso e belo cenário que simula um mapa cortado pelo mar - implorar, ajoelhar-se, rebaixar-se e evocar a velha amizade, "para que eu possa me salvar enquanto é tempo (eu acho)..."...

"Adeus, meu querido amigo", sentencia Max entre lágrimas de dor, ao finalizar a última carta. Que retorna ao remetente com o fatídico carimbo de ENDEREÇO DESCONHECIDO, presságio de um trágico fim.

Para ambos; de um lado do mar, um Max desolado, destruído ao destruir, com seu triunfo silencioso, o amigo a quem amava. E de outro, Martin, provavelmente enviado a um campo de concentração qualquer. Apenas seres humanos, capazes de qualquer coisa para defender seus interesses ou a sua dor. E com direito a torcida da platéia, que tomou partido e até torceu para que a vingança do judeu Max fosse maligna, como diria o "vampiro brasileiro" de Chico Anísio.

Mas as risadas que as insistentes cartas "judias" de Max a Martin suscitam se desvanecem, perto do anunciado final. Fica o amargo gosto de sangue humano, de calor humano, de fraqueza humana - matérias de que, afinal, todos nós somos feitos.

Sábado, 28/5 - O "susto sexual" na América

A convite da Fatita Bustamante-Celes, a grande militante do cinema na nossa região, fui assistir no sábado ao filme "Kinsey" (que, no Brasil, tem o sugestivo subtítulo "Vamos falar sobre sexo"). A interessante e curiosa história do autor do Relatório Kinsey, o primeiro estudo sério sobre a sexualidade nos Estados Unidos, é contada com muita propriedade neste filme em que o ótimo Liam Neeson vive o protagonista. Não tenho meios de avaliar sua precisão histórica, sobretudo quanto à personalidade do biografado e seus métodos heterodoxos de pesquisa, mas a proposta é instigante: na época em que tudo era proibido e imperavam não só o medo de abordar o assunto "sexo" mas também os mitos e as doenças venéreas, a intervenção "fisiológica" e o interesse quase profilático do Dr. Kinsey sem dúvida abriram muitas portas para a circulação do conhecimento sobre o assunto.
Mas, como nem só de sexo vive o sexo, a produção do relatório serve como pano de fundo para conflitos diversos entre sentimento, moralidade, relações familiares e afetivas na sociedade daquela época.
"Kinsey" é um belo filme pela consistência, fotografia, ritmo e desempenho dos atores. Além disso, permanece pela reflexão que suscita: o ser humano não mudou muito, ao que parece, daquela época para cá. As revelações que remexeram tremendamente o baú da hipocrisia americana teriam talvez, hoje, repercussão igual ou pior. Afinal, é a velha, boa e nova história; todo mundo já sabe, mas ninguém quer falar do assunto. E os criacionistas estão chegando...

sexta-feira, maio 27, 2005

Como serão os sonhos de Miguel?

Vejo Miguel dormir, ainda que por um instante,
mas desde já imagino o que estará a sonhar.
Trechos de viagem, de balão ou palanquim,
balouçando ora leve, ora forte,
sobre verdes de marfim.

Observo Miguel; de lado, mãozinha perto do queixo,
a macia pele recém-chegada, de um indefinível rosado.
Os cabelos, muitos, sossegam no travesseiro.
E a manta de várias gerações que o envolve
anuncia flores, azuis, bordados gravados na história.

E dorme, com poucos ruídos, suspeita apenas de suspiros.
O que sonhará Miguel, passageiro de horas,
em seu sono de conto-de-fada?
Verá ele a asa armada do Arcanjo
que lhe empresta o nome,
"aquele que é como Deus"?
Cruzará com ele a Noite, o Norte, o Inverno?
Defenderá a seu lado, contra as trevas,
o trono da santidade?

Ou dormirá simplesmente,
bafejado de inocência
e da graça de chegar?

Parece satisfeito, o Miguel.
Belo naquilo que o faz único
e, a um tempo, igual.
Singelo e forte como a vida
que o recebe com tantos cuidados,
agora.
Procuro pistas em seu sono,
um indício, um sinal de bravura,
uma lembrança do balão
do Senhor de Münchausen.
Mas ele, entre vestígios de bocejos,
nada revela.
Apenas dorme,
e sonha,
e exala vida
sobre minhas vertigens.



P.S. - A "bloguesia" do dia é para Miguel Delgado Delunardo, segundo filho de Ana Cláudia e Sérgio, irmão do Olavo, neto de Marlene & Plínio, Ana & Murilo, sobrinho de muitas tias (Zanza, Bebel, Helena, Gagau, Márcia) e dois tios (André Luiz e Alexandre), e primo de Caio, Eduardo, Mariana, Ana Luísa, Rodrigo, Marina, Gustavo e Alexandre Jr.
A super-mamãe, Ana Cláudia, é minha amiga do peito, tem uma família linda, cheia de gente unida, bonita e inteligente, e colabora muito para melhorar a vida neste planeta com sua simpatia, nobreza e elegância. Parabéns, muitos parabéns, muitas felicidades para toda a família, agora maior (e mais bonita, se isso é possível) com a chegada do Miguel.

quinta-feira, maio 26, 2005

O sexo no olho da violência

"O Lenhador", excelente filme com Kevin Bacon, é antes de tudo uma lição sobre violência sexual que vai além das marcas visíveis. Trata, sobretudo, dos estragos profundos, das dores que não se detectam à luz das evidências, da psicanálise ou do comportamento no dia a dia.
Diante dessa questão que é tão recorrente na nossa e em todas as outras sociedades, sempre tive a nítida sensação de ser uma mulher de sorte, por ter tido a chance de escolher quando, como e com quem iniciar e exercer minha sexualidade. Mas com o tempo, e conhecendo melhor a dura realidade da violência sexual, fui percebendo que o problema aflige mulheres e homens, meninas e meninos indiscriminadamente.
Me lembro de ter lido, num exemplar da saudosa revista REALIDADE, uma reportagem que me abriu muito os olhos para a dimensão do problema (e olhe que estávamos na década de 1970!). O texto dizia: não procurem as estatísticas nas classes ditas "menos favorecidas"; o maior índice de abuso sexual de menores concentra-se na classe A, na elite. E os agressores são, quase que infalivelmente, pessoas da família: um pai, tio ou parente próximo. Alguém que a criança conhece e confia.
Estabelecem-se, dessa forma, os mais perversos pactos de silêncio; cercada pelo medo - de alguém descobrir e, pasme-se, de perder o afeto do próprio agressor - a criança aceita a violência, sujeita-se a reviver o drama sempre que solicitada. E vai bloqueando as zonas de sentimento na alma, isolando a melhor parte de si - o dar-se, a inocência diante do afeto, a naturalidade da alma. A deformidade se alastra de tal forma que, mesmo que se passem anos e que a parte agredida se liberte daquela situação específica, a zona de silêncio lá dentro permanece. Uma estranheza, uma ausência diante das alegrias simples, comezinhas, de quem não imagina como é sentir-se assim.
Como Vicki, a namorada de Walter, o personagem de "O Lenhador", ou Robin, a menina de 11 anos que quase o leva a reincidir no crime; a resignação de uma dor galvanizada, que ficou paralisada na raiz. Que a mulher já adulta combate com um comportamento aparentemente agressivo e quase masculino, enquanto a criança se limita a chorar e mesmo agradecer, com um abraço, a um homem que quase abusou dela simplesmente porque não o fez. O que me faz lembrar, também, outra cena igualmente triste de um outro belo filme, "O Padre" (1994, Inglaterra, direção de Antonia Bird): o momento em que a menina que sofria abuso do próprio pai, e que ele tentou proteger, é a única em sua fila de comunhão, contra toda uma comunidade que o rejeitara depois de ele ter se envolvido num escândalo que revelou sua homossexualidade, noticiado por um tablóide sensacionalista.
A violência sexual contra crianças, mulheres, homens, homossexuais, minorias - enfim, contra qualquer ser humano - precisa ser combatida sem tréguas dentro das casas, dentro dos segredos, dentro dos meandros onde se esconde. As entidades que militam nos direitos humanos precisam descobrir formas mais eficientes de recrudescer esse combate, para que se possa tratar as marcas, penetrar no silêncio e devolver, de alguma forma, a liberdade ao coração do agredido.
Um agressor como Walter, o criminoso do filme "O Lenhador", que luta com todas as suas forças para se livrar do próprio destino, sem dúvida é alguém que merece proteção, crédito, uma oportunidade. Afinal, nunca matou ou machucou fisicamente - e se horroriza com aquilo que matou ou machucou por dentro, quando se vê diante de dores como a de sua namorada ou da garota Robin. Mas o perfil de Walter não se encaixa totalmente no do estuprador, do sádico ou do pedófilo frios, irracionais e assassinos que vemos todos os dias nos jornais; não se pode, desavisadamente, tomá-lo como modelo para a realidade trágica que ocorre todo dia. É preciso punir sem complacência ou falsa humanidade a violência sexual. Se estamos querendo fazer um mundo um pouco melhor, devemos dar a esse problema a atenção que merece, independentemente de poder, riqueza ou classe social. Violência sexual não é apenas crime, é destruição. E nossa sociedade precisa construir seres humanos livres, plenos e mais felizes.

quarta-feira, maio 25, 2005

Dança que amo, dança que vivo

Antonio Bento liga das alturas de Penedo e diz: "Posso passar aí agora?".
Claro que pode, penso e digo simultaneamente.
Antonio Bento, uma inspiração quase que permanente. Bailarino, coreógrafo, figuraça e absolutamente sintonizado com tudo o que diz respeito à arte, divide comigo há quase oito anos a responsabilidade de manter em atividade o Ballet de Câmara, companhia que não concebemos, mas criamos todos esses anos como filha, com desvelos paternos.
Pudera: uma companhia de dança do interior sobreviver tanto tempo é, no mínimo, uma vitória. E sem patrocínio permanente, sem benesses do governo, nada! O trabalho, de base clássica ultra-rigorosa e inspiração contemporânea, é administrado por Antonio com absoluto controle de qualidade. No que poderíamos chamar de nossa "gestão", a companhia contabiliza sucessos de público e um repertório de invejável criatividade, que inclui até mesmo uma ousada montagem de "Carmen" (sim, Carmen de Bizet, ela mesma!)idealizada pelo coreógrafo.
Tecemos esse sonho, entre altos e baixos, com uma inesgotável teimosia. Formamos artistas, batalhamos apoios e conseguimos subir ao palco, sempre, com talento, dignidade e beleza.
"Quarteto", a mais recente criação de Antonio Bento e que estreou em dezembro passado, é nossa mais nova paixão: enxuto, delicado, costurado por uma trilha sonora de peso que vai desde Björk a Richard Wagner, é um espetáculo de linhas esguias, movimento sóbrio e audacioso e de uma graça invulgar. Desde o início nos faz aflorar os mais fortes sentimentos. Nessa noite que não adivinha a tempestade da manhã seguinte, vamos conversar sobre essa paixão, e como fazer para que ela possa voltar aos palcos, a todos os palcos que pudermos.
Assistimos ao DVD e de novo nos vem aquela emoção de primeiro beijo, falta de ar, frio na barriga: é lindo, e nós o sentimos como no primeiro momento. Depois fazemos contas, que chato.. mas é preciso: temos de gravar um novo DVD, mais cuidado, editado e pronto para apresentar condignamente o espetáculo. Para isso temos de ensaiar, colocar os bailarinos em forma, reconstruir a trajetória.
E assim passamos boa parte do resto da noite. Nos despedimos com esperança, nos braços da dança, essa musa que nos acompanha o tempo inteiro, prontos para lutar para que tudo, afinal, permaneça.
E Antonio se vai, enquanto guardo as planilhas no travesseiro da alma para o dia seguinte, início da batalha por mais um ano de trabalho.

terça-feira, maio 24, 2005

Em lua de mel com o conhecimento

Hoje assisti - melhor dizendo, participei de um milagre. Milagre dos bons é pequeno no jeito, mas grande demais no resultado. Pois foi bem assim.
Tenho uma amiga bárbara, Solange, que é livreira. Só de ouvir essa palavra - livreira - dá um arrepio de felicidade. Mas ser livreira ou livreiro no Rio de Janeiro, em São Paulo, Buenos Aires ou Londres, é uma coisa. Outra muito, mais muito diferente mesmo, é ser livreira - e há 30 anos, pelo menos! - em Volta Redonda.
Pois a Solange, que tinha sua livraria Veredas (e que nome!) no subsolo de uma antiga galeria, encheu-se de coragem e deu um salto de qualidade; no ano passado, mudou-se para uma loja enorme, com direito a mezzanino e tudo, e recriou a livraria com ares de primeiro mundo: projeto arquitetônico de classe e funcionalidade, o café Diadorim no andar de cima... Claro, uma livraria chamada Veredas só pode abrigar, mesmo, um café chamado Diadorim.
Pois a nossa livreira militante me convidou para testemunhar uma visita especial: ela vem recebendo periodicamente, na loja, todas as turmas do curso primário para idosos, um projeto desenvolvido pela Associação de Aposentados, em parceria com o governo do Estado e escolas públicas municipais. Hoje viria a última turma, o pessoal da terceira série.
Combinei com o Wallace Feitosa, amigo e excelente fotojornalista, para irmos lá fazer uma matéria. Às nove eu já perambulava nos arredores do shopping onde se localiza a livraria, e lá pela nove e dez, mais ou menos, comecei a perceber a chegada de grupinhos de duas, três pessoas. De repente já eram muitas, de olhar alegre e jeito ora bonachão, ora curioso.
Esperei um pouco para subir, até encontrar a loja bem cheia. Os visitantes, acompanhados de duas professoras, percorriam encantados os balcões onde se encontram, distribuídos com bom gosto, vários mundos que eles ainda não conhecem bem. Conversando animadíssimos, folheavam de tudo; de manuais de ópera a Drummond, de auto-ajuda a biografias. No rosto, sempre uma surpresa.
Aproximo-me da professora e começo a função de repórter, toureando um fluir teimoso de emoção. E descubro que Íris está no projeto há três anos, ao lado de outras 14 professoras. "E não quero mais sair!", afirma convicta. Ao todo são 250 alunos com idade média de 60 anos, distribuídos em turmas que vão do CA à sexta série. As aulas são de dia, o que é muito importante para o grupo, e as turmas são distribuídas entre a Associação de Aposentados, o Colégio Estadual Manuel Marinho e o Colégio Estadual Presidente Roosevelt.

Íris conta que muitas mulheres decidiram realizar o sonho de estudar depois de criar os filhos. "Tem casos em que o pai não deixava, outros que o marido é que impedia, ou crianças pequenas", explica. "Agora, que estão mais livres, essas mulheres têm a maior disposição para aprender".
João de Souza, galante em seus 65 anos, é o poeta do grupo. Agarrado a um exemplar de Drummond, diz que "a gente tem que pegar um pouco deles, pra poder escrever as coisas da gente, né?".

Tem outro João no grupo; João Bosco de Abreu, 54 anos, acha dificuldade na leitura. "Vamos tentando daqui e dali, mas Matemática é melhor, não?" E incentiva o xará João a nos propor uma charada de números. Claro que nem chegamos perto de adivinhar - e ele, com orgulho, nos mostra como chegar ao resultado.

Dona Geni Maria, 70 anos, no curso há quatro meses, já tem uma filha formada - Linda, 40 anos e sargento da Marinha - que mora em Roraima. "Agora estou mais livre e posso aprender", comemora. "O mais importante é a saúde. Eu nunca tive nada; só agora é que apareceu um probleminha no coração, mas já estou tomando remédio e pronto." Em Volta Redonda desde os cinco anos, resolveu voltar à escola porque finalmente achou um curso que é de dia. "Eu não saio à noite, sabe? Por medo da violência. Mas de dia é ótimo. Já estou na terceira série e pretendo, se Deus quiser, chegar ao segundo grau, para fazer Secretariado." Ah, e também dar aulas de corte e costura em casa.

Raimunda, 60 anos, e Geralda, 55, estão realizando sonhos. "Procurei estudar porque eu não entrava mais nas conversas lá de casa", conta Geralda. "Eu ficava sem ambiente, só "boiando"! Hoje busco o saber em si, que é uma coisa muito boa."
Raimunda esperou os filhos crescerem e se aposentou. Está na escola para preencher seu tempo e fazer amizades. "Gosto de ler e de cantar", sorri Raimunda, que já participou de atividades corais e se diz muito agitada. "Antes eu não fazia nada, hoje até dançar estou dançando", diz. "Sempre no Baile dos Aposentados". As duas foram atraídas pela propaganda do governo: "pode ser de noite, pode ser de dia, tem que ser agora!" - e resolveram encarar. Ninguém se arrepende.

Em pleno café Diadorim, forma-se uma roda e os profissionais da livraria espalham na mesa vários livros, a maioria infantis (todos já sabem ler, mas o processo ainda é lento). Com felicidade nos olhos, o grupo folheia, folheia, vê, escolhe. A livraria dá descontos grandes nesses exemplares, e eles procuram ver o que mais lhes interessa. Íris fala um pouco sobre alguns autores. Seu João de Souza toma notas em seu bloco recheado de proposições poéticas ainda em gestação. Outras senhoras ocupam-se, num determinado instante, de livros de filosofia. O folhear vem acompanhado de risadas gostosas, camaradagem, comentários. E todos querem comprar pelo menos um livrinho.
Wallace tem ótimas idéias de fotos interessantes para ilustrar nossa matéria, que pretendemos publicar no maior diário local. O pessoal posa na maior tranqüilidade, sempre rindo e participando muito de tudo.
Marcelo, o gerente da livraria, lembra um fato que qualifica como arrepiante: "Numa das outras turmas tinha uma senhora que chegou procurando um livro da Cecília Meirelles. Na hora que ela achou, levantou o livro e saiu agitando, triunfante: "Olha aqui, gente! Olha aqui a Cecília Meirelles!".
Mais dois dedos de prosa e pronto, tenho de ir embora. Mas nem dá vontade: a felicidade daquelas pessoas é tanta que toma conta da gente, emociona, guarda uma viagem recheada de histórias de vida que podem até virar livro... e vão virar: o projeto do curso é, ao final, cada um fazer o seu próprio livro.
O do seu João de Souza, com toda certeza, será de poesia.

segunda-feira, maio 23, 2005

Longas de outono

De cinema e de filmes

Assisti "Cruzada" no sábado à tarde, num belo cinema quase vazio.
Minha cidade, de uns 180 mil habitantes, vícios e virtudes urbanos, já foi pródiga em cinemas. Isso ocorreu, felizmente, enquanto eu crescia, o que embalou minha paixão por cinema e uma vocação para rato de sala de exibição que sempre cultivei com orgulho. Havia três imponentes cinemas: Cine Riviera, Cine Palácio, Cine Santa Cecília. Todos enormes, requintados, anunciavam o início da sessão com solenes badaladas, como as de um onipresente Big Ben, e o apagar progressivo da iluminação lateral. Um êxtase.
Depois, numa entressafra infeliz, foram-se acabando, um por um. Seguiram-se anos sem sala alguma. Uma tristeza alimentada pelo vídeo doméstico, que acabou gerando um mau hábito decisivo em pelo menos duas gerações de potenciais cinéfilos que, hoje adolescentes, têm o vício das locadoras.
Há um ano a cidade assistiu a um rissorgimento: ganhou duas salas de 200 lugares cada, modernas e comparáveis a qualquer cinema de shopping do Rio ou São Paulo, dolby stereo e tudo o mais. O alívio e a alegria iniciais, porém, começaram a virar medo; a pouca freqüência já levou os donos, mais de uma vez, a considerar seriamente o fechamento dos cinemas. O curioso é que quatro salas na vizinha Volta Redonda, e mais duas em Resende, 40 km adiante, todas do mesmo dono, vivem cheias e são perfeitamente lucrativas. E todas (inclusive as de Barra Mansa) têm lançamentos simultâneos com as principais capitais brasileiras.
O que acontece, então? Algum velho estigma, uma preguiça intrínseca, desinteresse? Ninguém sabe.
Mas eu resisto, falo com todo mundo: "Olha, corremos o risco de perder os cinemas, vamos prestigiar." E dou o exemplo: todo fim de semana lá estou eu, de tarde, aproveitando a magia.
Foi assim com "Cruzada", no qual eu não apostava muito, mas gostei. A recente onda de épicos pode surpreender: "Cruzada" tem suas sutilezas, seus desvãos, algo mais que efeitos especiais de grandeza. O mais empolgante é ver um grande ator como Edward Norton arrasar, literalmente, por detrás de uma máscara, sem ser percebido senão por seu indiscutível talento.
Que um Ridley Scott tem lá o seu valor, ah isso tem.

Achados na tevê a cabo

Quem gosta de cinema, gosta, ponto final. Além de "Cruzada", cruzei (literalmente) com três outros bons filmes entre sábado e domingo: "Longe do paraíso", "Pescando o amor" e "Vida que segue".
No primeiro, mais um grande momento da grande Julianne Moore, ao lado de Dennis Quaid e Dennis Haysbert (direção de Todd Haynes). Fotografia excelente do passado, com tremenda atualidade - e beleza, claro, porque o belo nunca perde o seu charme.
"Pescando o amor", que também caiu na rede por acaso, é um filme do diretor inglês David L. Williams, que trata de conturbações amorosas: rapaz que, por falta de opção, resolve atuar como garoto de programas acaba se apaixonando pela filha de uma cliente e... Bem, o que poderia parecer uma história comum é contada com inteligência, fino humor e até mesmo uma certa doçura.
"Vida que Segue" narra com enorme densidade o drama de um casal (Dustin Hoffmann e Susan Sarandon) cuja filha única, que estava para se casar, é assassinada. Na verdade, nada é o que parece nessa história; aos poucos, muitas verdades vão aparecendo, à medida que o relacionamento entre os pais e o ex-noivo da filha (Jake Gyllenhaal) assume novos contornos. Elenco esplêndido, narrativa fluida, ritmo quase europeu, competente direção de Brad Silberling.
Um régio banquete, eu diria, para o meu lado "celulóide".

domingo, maio 22, 2005

Liberdade em perigo, de novo?

Preciso falar de algo que vem me incomodando desde que deu no jornal. São fatos que, associados, formam um inquietante conjunto: a censura ao livro do Fernando Morais, a censura à reportagem do Fantástico sobre corrupção e, por último, a franquia judicial que permite às empresas vasculhar os e-mails dos funcionários.
Nos termos da nossa democracia novata, ainda mal e mal exercitada após anos de obscurantismo e dor, esses indícios são graves. Quando a sociedade começa a abrir enfim suas feridas e aprende o árduo porém seguro caminho da denúncia, da clareza e da transparência, é que ela encontra forças para se reorganizar a partir de novas premissas.
De repente, no meio do exercício, com tecnologias de toda sorte e cada vez mais instantâneas conectando todo mundo, censuram-se um livro, um meio de comunicação e também as cartas do século 21. Como podemos olhar para esse tipo de movimento, na contramão de todas as duras lições que vivemos nos últimos anos, e nos posicionar?
É preciso gritar, e gritar "Fogooo!!" com todas as nossas forças. É preciso que governo, lei ou juiz algum aceitem passivamente esse tipo de precedente. No dia a dia das grandes corporações, celeiro de enormes transformações nas relações sociais, como conviver com a sombra de um Big Brother autorizado judicialmente a controlar todos os passos de quem quer que seja, a julgar a propriedade de uma mensagem de correio e atribuir-lhe intenções que podem, à mercê de qualquer critério interno, ser consideradas inadequadas?
É certo que há casos e casos, mas a questão fundamental é o princípio: evoca-se a liberdade de expressão diante de uma letra de funk, e no entanto assistimos passivamente à sua revogação quando um livro e uma denúncia em tevê são censurados. Para resolver casos como o que deu origem à decisão judicial sobre a censura dos e-mails, existe o caminho natural, que é a Justiça. Cabe a esta, em situações de suspeita, oferecer os instrumentos legais para busca e apreensão de provas - o que não lhe autoriza a permitir controle indiscriminado sobre todos os cidadãos. Afinal, é a própria lei que nos afiança que todos somos inocentes até prova em contrário.
A sociedade precisa se insurgir contra esses fatos aparentemente pequenos, mas significativos - sobretudo em face da nossa história recente e de tudo o que o povo brasileiro teve de passar para recuperar sua cidadania.
Não podemos permitir que essa triste moda pegue, nem que nossos filhos não sejam levados a refletir sobre o que pode vir em seguida, se não dermos atenção ao perigo. O país tem admitido suas falhas em atitudes como a que, recentemente, compensou em parte a viúva de Luiz Carlos Prestes pela enorme dívida da nação para com esse grande brasileiro.
Está na hora de nos lembrarmos, e fazer lembrar, que censura é coisa para nunca mais.

1:37, 22 de maio, 18 anos

É uma data especial, 22 de maio. Luísa, minha filha única, completa 18 anos e está, claro, comemorando com seus amigos. E eu comemoro Luísa com a criação do JORNALISTICO, este espaço onde farei, todos os dias, a melhor coisa que sei fazer na vida: escrever. Aventurar-me de vez como repórter fotográfica da vida que observo, aos 49 anos e 23 de jornalismo, vivido das mais várias formas.
Vinte e dois de um maio ainda indeciso entre frio, calor e chuva: bela data para iniciar minha jornada pessoal pela informação, pela opinião, pelo sentimento.
Bem-vindo, JORNALISTICO! Vida longa e saúde para as idéias!